ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
NOVEMBRO, DOMINGO  24    CAMPO GRANDE 34º

Artigos

O olhar indígena direcionado ao Marco Temporal

Kleber Gomes (*) | 09/06/2023 13:12

No último dia 24 de maio, a Câmara Federal deu como aprovado um requerimento de urgência que trouxe celeridade à tramitação do Projeto de Lei que torna legal a Tese do Marco Temporal. Na sequência, mais precisamente no dia 30 do mesmo mês, capitaneado pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), essa Tese acabou por ser aprovada pelos deputados federais. Na ocasião, houve 283 votos favoráveis e 155 contrários. Assim, o Projeto seguiu para o Senado.

Essa clara manobra não deixou dúvidas de uma tentativa de pressão ao Supremo Tribunal Federal (STF), o qual, em 7 de junho, retomou o julgamento sobre o caso. No entanto, sua decisão final acabou por ser adiada, logo após o voto emitido pelo Ministro Alexandre de Moraes, este contrário ao Marco Temporal. A pausa, mais uma vez no julgamento, deveu-se ao pedido de vistas executado pelo Ministro André Mendonça. Até o momento, o placar no STF segue em dois votos contrários ao Marco Temporal e um a favor. Além do Ministro Alexandre de Moraes, votou contra a Tese o Ministro relator do caso Edson Fachin. O voto favorável ao Marco Temporal foi emitido pelo Ministro Nunes Marques.

O que tramita no STF é o Recurso Extraordinário com Repercussão Geral (RE-RG) 1.017.365, o qual tem como base o pedido de reintegração de posse vindo do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o povo Xokleng, relacionado a uma área reivindicada da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ em solo catarinense.

Ao longo do século passado, o território, de início, ocupado pelos Xokleng, foi reduzido. Apesar dessa drástica perda sofrida, os indígenas desse povo jamais deixaram de reivindicar a sua posse. Apesar dessa terra ter sido já identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte do território tradicional dos Xokleng, a disputa seguiu-se por meio da judicialização realizada pelo governo catarinense.

No ano de 2019, o STF, por unanimidade, declarou, caso, no julgamento final desse RE, haja a aprovação do Marco Temporal que seja dado o status de "repercussão geral" ao caso. Assim, a decisão final nesta causa fixará uma tese de referência a todos os casos relacionados às terras indígenas, independentemente das instâncias do Judiciário.

Relembrar o Marco Temporal significa relacioná-lo a uma Tese jurídica que diz ser o dia 5 de outubro de 1988, a data da promulgação da atual Constituição Federal, como o ponto de referência/padrão na/de demarcação de terras indígenas no Brasil. Em suma, essa Tese traz que, se os indígenas não tiverem provas de que ocupavam a área no período estipulado pelo Marco Temporal, ou seja, até o dia 5 de outubro de 1988, os povos originários que, por séculos, foram expulsos de seus territórios perderão o direito às essas terras.

No ano de 2017, ainda sob o governo de Michel Temer, o Brasil viu a Advocacia-Geral da União (AGU) emitir um parecer favorável a essa Tese. Três anos depois, em 2020, o STF suspendeu os efeitos desse parecer. A Suprema Corte, por meio deste ato, declarou que essa suspensão perdurará até o desfecho do julgamento que tem sob sua responsabilidade atualmente.

Como povos indígenas e parte da sociedade nacional que vê com preocupação os rumos desse assunto, existe a insistência veemente para que a AGU repudie o entendimento que expressou há seis anos sobre a referida Tese e, na sequência, sugira ao STF a defesa dos direitos dos povos originários por meio da reprovação do Marco Temporal.

Quando o olhar indígena mira o atual Presidente da República e seu posicionamento relacionado a esse tema, há uma recente lembrança do compromisso do até então candidato Lula com a proteção do meio ambiente e com os direitos dos povos originários. Parte desse compromisso acabou se concretizando, por meio da criação do Ministério dos Povos Indígenas e da retomada, ainda que tímida, das demarcações das terras indígenas.

A preocupação nossa vem à tona, aos vermos nas entrelinhas algumas contradições do atual Governo Federal quanto ao Marco Temporal. Por um lado observamos, de forma explícita, o Ministério dos Povos Indígenas e a Funai com sua rejeição a essa Tese. Por outro, presenciamos, recentemente, o Ministro da Agricultura favorável a esse Marco, deixando bem clara a sua opinião em uma entrevista por ele concedida. A preocupação se intensifica, quando não há, até aqui, por parte do Advogado-Geral da União nenhum sinal de revogação do parecer de 2017 emitido pela AGU.

Os povos indígenas clamam ao país, no sentido de que sejam ouvidos os nossos anseios, quando da preocupação surgida da iminência da consolidação final do Marco Temporal.

Temos nos mobilizado, por todo o Brasil, no intuito de que a opinião pública se sensibilize diante dos claros perigos que nos rodeiam relacionados às possibilidades da aprovação do Marco Temporal. Há todo um histórico de violência e de desrespeito a nossos costumes, identidades, histórias e religiões. Um dos meios concretos de apagamento usados contra nossos povos foi a expulsão que sofremos de nossas terras. A Tese em questão chega, nos dias atuais, como uma chancela à tudo aquilo de brutal, violento e desumano que nossos antepassados sofreram e muitos de nós ainda experimentam em vários cantos do país, quando reivindicamos a demarcação e a posse de nossa terras.

O Marco Temporal joga um enorme pano sobre o passado no qual nossos territórios foram intencionalmente invadidos, a partir da chegada dos colonizadores europeus, um processo iniciado lá atrás e que, infelizmente, até hoje não tem sido interrompido. De norte a sul, de leste a oeste, continuamos sendo desrespeitados com relação às realidades de invasões das terras originalmente ocupadas por nossos ancestrais.

Nossa luta contra o Marco Temporal passa pelo fato de buscarmos, mais e mais, que nossas formas de vivências sejam reconhecidas por um maior número de brasileiros e de brasileiras. Objetivamos legitimar, em público, nossas identidades, culturas e costumes. Uma legitimação que passa pelo cumprimento daquilo que a Carta Magna do Brasil consolidou com respeito à posse de nossas terras.

Caso concretizada a aprovação do Marco Temporal, serão reais e concretas paralisações e revisões de processos demarcatórios por todo o país. Os povos indígenas serão fatalmente impactados, caso essa Tese seja aprovada, pois seus direitos fundamentais aos territórios originários serão muito mais violados, além de tudo aquilo de prejuízos que já nos ocorreram até o momento. Agravam-se, dessa forma, as possibilidades do aumento exponencial das violências físicas e simbólicas infligidas contra nossos povos.

Quando voltamos o nosso olhar a tudo aquilo que o Marco Temporal poderá representar aos nossos povos, caso se concretize a sua aprovação, fazemos um apelo para que a sociedade brasileira, se não o todo, mas grande parte dela, acompanhe-nos por meio de falas e de uma ação, ambas críticas, aos desfechos desse assunto, tanto no Supremo Tribunal Federal, como no Senado e nas decisões que cabem também ao Governo Federal. Que seja apenas um projeto de lei que tente transformar o Marco Temporal em um flexibilizador e um delimitador para a proteção das terras indígenas. Que não passe disso.

(*) Kleber Gomes é Indígena terena, professor de Educação Infantil e Anos Iniciais na Rede Municipal de Ensino (REME) de Campo Grande/MS, mestrando em Ensino de História pelo PROFHISTÓRIA da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).

Nos siga no Google Notícias