O que muda com a Lei 14.532/2023?
Em 11 de janeiro de 2023, por ocasião da posse conjunta das ministras Sonia Guajajara, titular da pasta dos Povos Indígenas, e Aniele Franco, do Ministério da Igualdade Racial, o então presidente Lula sancionou a Lei 14.532, que altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial, prever pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e prever pena para o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público.
Importante destacar que o deslocamento dos atos de injúria por questão de raça, cor, etnia, gênero, religião e procedência nacional é reivindicação que vem de longe, pois a diferenciação entre o crime de injúria racial e o crime de racismo é uma tentativa de suavizar os atos e os efeitos do racismo na sociedade, fortalecendo-os, uma vez que os impactos da injúria racial não diferem do racismo no mundo real, na vida de cada uma das vítimas.
Ora, até então, o argumento para não iniciar investigações contra o crime de racismo, e sim por injúria racial, se sustenta em dizer que a injúria tem por fim atingir, por questões de raça, cor, etnia, procedência nacional e religião, um único indivíduo, enquanto o crime de racismo visa atingir um grupo de pessoas por essas características citadas.
Mais esdrúxulo não poderia ser.
Com as raízes coloniais e escravistas, que forjaram a sociedade brasileira, é inadmissível que tal justificativa ainda hoje se sustentasse, pois quando se tem por alvo um indivíduo por suas características raciais, étnicas, de cor ou procedência nacional, certamente não é aquele indivíduo o alvo.
O agressor racista direciona ao indivíduo atos discriminatórios, se valendo de um histórico de invisibilidade e criminalização dos grupos que foram minorizados e vulnerabilizados ao longo dos séculos manifestando que seu ato racista visa manter nos ostracismo e na invisibilidade um determinado grupo.
A sanção da Lei 14.523/23, desloca o crime de injúria racial para o rol dos crimes de racismo, acompanhando os avanços da doutrina e da jurisprudência que já equiparavam crime de injúria racial ao crime de racismo e, a partir de agora, “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional” é racismo.
Além de alterar o status do crime de injúria racial para crime de racismo, conferindo, portanto, a sua prática o caráter de imprescritibilidade e inafiançabilidade, a lei agrava sua pena base de 01 (um) a 03 (três) anos para 02 (dois) anos a 05 (anos) de reclusão e prevê como causa de aumento de pena o concurso de pessoas (A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas).
Destaca-se também nesse ponto que a Ação penal deixa de ser condicionada a representação e passa a ser incondicionada.
A lei também altera o artigo 20 da lei de crimes raciais dois tipos de racismo com penas mais severas: o racismo qualificado pelo meio de comunicação, praticado em publicação, impressa ou virtual, inclusive nas redes sociais; e o racismo qualificado pela prática em eventos públicos, como atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais. Ambos, com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e para o segundo caso a previsão de suspensão de direito, qual seja, a proibição de frequentar por 3 (três) anos a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.
A nova lei previu ainda aumento de pena para o caso da prática de racismo em contexto “recreativo”, quando a conduta discriminatória ocorrer com intuito de descontração, diversão ou recreação, e, ainda, quando o racismo for praticado por funcionário público, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las.
E quanto ao racismo recreativo, antes que o leitor pergunte “mas agora como que se diferencia a prática de racismo de uma brincadeira”, já respondo que não se diferencia. A prática de racismo no contexto de humor não é mais justifica para o agressor eximir-se de responsabilidade pela prática do crime de ódio.
Destaca-se, ainda, que a nova redação dada ao art. 20-C traz parâmetros para identificar os crimes de discriminação ao prever que discriminatória é “qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.
Por fim, para que as alterações sejam para além da letra da lei, é imprescindível o compromisso da sociedade civil, do poder público, das instituições do sistema de justiça... de todos nós brasileiros e brasileiras no compromisso com a democracia e no combate a todas as formas de discriminação. Nunca é tarde para lembrar que basta não ser racista, é preciso que sejamos antirracistas.
(*) Caroline Caetano é presidente da comissão de promoção da igualdade racial da OAB/MA.