O sexo nas artes: entre o erótico e o pornográfico
Neste artigo exponho sinteticamente os resultados obtidos em meu TCC em Sociologia, que teve como tema a fronteira entre “erotismo” e “pornografia”. Mais precisamente, detive-me nas diferenças socialmente percebidas entre os dois conceitos, ou seja, nas representações hegemônicas em torno deles. Se me refiro à percepção das diferenças é por saber que, essencialmente, pornografia e erotismo, por si sós termos de difícil definição, se tornam na prática ainda mais difíceis de precisar quando contrapostos. Entre os que estudam a fundo esse assunto, sabe-se que são frágeis e em grande medida arbitrários os limites que separam um do outro. Popularmente cultiva-se a ideia de que a pornografia seria aquela em que o sexo é explícito, e o erotismo, aquele em que o sexo é velado. No entanto, há uma série de obras de arte que mostram o sexo de forma explícita e não são consideradas pornográficas, como veremos adiante.
Muitos são os pesquisadores que tentam definir pornografia pelo aspecto mercadológico. Assim, todo produto cultural produzido visando obter lucro econômico por meio da excitação de seu público consumidor seria pornográfico. Essa definição seria plenamente satisfatória não fosse o fato de que não raras vezes peças de arte que não integram um mercado específico são acusadas de pornográficas. Lembremos, por exemplo, de casos ocorridos no Brasil, como o fechamento da exposição Queer Museum, em Porto Alegre, o estabelecimento de censura etária numa exposição do Museu de Arte de São Paulo, em 2017, ou a retirada de livros da Bienal do Rio de Janeiro, em 2019. Há, por um lado, aqueles que detratam as obras, alegando, entre outras coisas, que são pornográficas, e por outro, os que negam esse fato veementemente.
Portanto, ao que tudo indica, “pornografia” não se refere unicamente a um tipo de mercadoria distribuída a um nicho; na verdade, ela é utilizada como uma categoria mais ou menos aberta e manipulada por diferentes agentes sociais e políticos em favor de interesses ideológicos
No início de minha monografia, procurei evidenciar esse campo de imprecisões conceituais, apresentando múltiplas definições que convivem no campo teórico, demonstrando dessa forma a ausência de consenso sobre o assunto. Isso feito, dediquei-me a um estudo de caso capaz de revelar quais aspectos de fato costumam estar em jogo quando um produto cultural é tachado de erótico ou pornográfico. Para tanto, foi escolhida, em conjunto com meu orientador Enio Passiani, uma obra paradigmática: O Império dos Sentidos (1976), do diretor japonês Nagisa Oshima. Esse foi o primeiro filme de arte da história do cinema a apresentar cenas de sexo realmente praticado pelos atores, sem qualquer técnica de trucagem. Apesar do realismo e da centralidade dessas cenas, ele foi amplamente recebido pela crítica e pelo público como um filme erótico, e não pornográfico (apesar da manifesta intenção do diretor de que ele assim o fosse). A partir dessa constatação prévia, a pergunta que orientou a análise do corpus de pesquisa foi “por quais motivos?”.
Para chegar à resposta, foram selecionadas 10 críticas de jornais e revistas de grande circulação à época do lançamento do filme no Brasil, interpretadas por meio de análise de conteúdo. Dentre todos os resultados obtidos pelos mecanismos de busca dos arquivos digitais desses jornais, foram escolhidos aqueles que apresentavam mais claramente a dicotomia erotismo x pornografia. Apesar de critérios estéticos também se fazerem presentes nas críticas (afinal, O Império dos Sentidos é um filme primorosamente produzido), constatou-se que a defesa do caráter erótico do filme tendia muito mais para o âmbito da moral do que da estética. Para qualificar o filme e diferenciá-lo da massa de filmes pornográficos produzidos naquela época (o período áureo do cinema pornô), os críticos extensivamente fizeram uso de termos como “amor puro”, “amor absoluto”, “busca do absoluto”, “experiência mística” e “sacralização do amor” para descrever a relação entre os protagonistas Sada e Kichizo (que fazem sexo durante quase todo o filme).
O que a pesquisa demonstra, portanto, é que o erotismo é definido como uma forma de representação onde o sexo serve a um propósito maior que ele mesmo (expressão do amor, do belo, do sagrado). Pornografia, por outro lado, é a representação puramente carnal do sexo, sem amor.
Assim, não seria exagero afirmar que o erotismo nada mais é do que uma forma de pornografia revalorizada em função de certos princípios e preceitos sociais. Sob esse ponto de vista, práticas sexuais não hegemônicas, como aquelas envolvendo BDSM (conjunto de práticas consensuais envolvendo bondade e disciplina, dominação e submissão, sadomasoquismo), são aceitáveis apenas quando apresentadas de forma palatável, não agressiva ao público, e preferencialmente carregadas de clichês de gênero e de romantismo comercial, como, por exemplo, no filme 50 tons de cinza. Além disso, lembremos que boa parte dos casos de censura envolvendo a arte no Brasil atingiram obras que discutiam questões LGBTQIA+, ou seja, obras que dão visibilidade a corpos, relações e práticas não normativas.
Ainda que o escopo de meu trabalho tenha se limitado à análise de um único filme, acredito que sua contribuição possa ser estendida a todas as formas de representação do sexo nas artes. Ao que parece, o adjetivo “pornográfico” sempre será utilizado para atacar obras que desafiem o que dada sociedade ou parte dela considera aceitável. Por outro lado, “eróticas” serão as obras que não agridam a moralidade do espectador. Afinal, como postula o famoso bordão, “a pornografia é o erotismo dos outros”.
(*) Vitória Ravazio Pais é bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS e mestranda em Letras na linha de pesquisa Teoria, Crítica e Comparatismo pela mesma universidade.