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O traficante que usa a Bíblia para justificar a violência contra padres

Por Bruno Paes Manso (*) | 11/07/2024 08:05

Dia 12 de outubro de 1995, feriado de Nossa Senhora Aparecida: era para ser um dia festivo, mas o País pegou fogo diante de um ataque inesperado a um dos símbolos da fé nacional. Durante a madrugada, em um programa de tevê ao vivo, Sérgio Von Helder, que era bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), chutou a imagem da Padroeira e desdenhou da crença de milhares de brasileiros.

A agressão causou repercussão, com amplo destaque no Jornal Nacional e na imprensa em geral. Houve manifestações de repúdio do presidente Fernando Henrique Cardoso, do bispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Salles, e até do papa João Paulo II. Von Helder foi processado, condenado e precisou se mudar para os Estados Unidos para evitar a fria dos fiéis brasileiros.

Corta a cena para os dias de hoje. O Brasil está bem diferente. A influência dos católicos não é mais a mesma. Os evangélicos representam quase um terço dos brasileiros e caminham para a hegemonia. A imprensa se pulverizou, entrou em crise, reduzindo sua capacidade de mobilizar a opinião pública. As instituições democráticas do Rio de Janeiro, um dos estados mais evangélicos do Brasil, também perderam sua força. Tiranias armadas exercem poder crescente nos territórios.

Foi nesse contexto que, no último domingo, dia 7 de julho, integrantes da quadrilha do traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Peixão, o chefe do Complexo de Israel, abordaram os representantes do vocacionário da Sociedade das Divinas Vocações, da Igreja Católica, responsável por três paróquias em Vigário Geral, Parada de Lucas, Cordovil e por duas capelas na comunidade. Os criminosos deram um ultimato: os padres e seminaristas não podiam mais rezar suas missas, nem realizar seu trabalho social na região. Assustados, eles precisaram, em um primeiro momento, ser resgatados por católicos de paróquias vizinhas. Alguns resistiram e ficaram nas igrejas para que os prédios não fossem invadidos.

A Sociedade Divina Vocações foi criada pelo padre italiano Justino Russolilo ainda no começo do século passado, voltada para trabalho social e de educação dos pobres. Há três anos, padre Justino foi canonizado pelo papa Francisco. As paróquias católicas estão há pelo menos 90 anos na região. Durante a Ditadura Militar, lideranças católicas de Vigário Geral foram importantes na articulação das lutas políticas por direitos sociais, servindo como base para as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Uma das lideranças formadas nesse núcleo político foi Nahildo Ferreira, ferroviário brizolista que, nos anos 1990, ajudou a criar a Casa da Paz, voltadas à educação de jovens, depois que seu filho foi assassinado por policiais na chacina de Vigário Geral. Vinte e uma pessoas morreram e as milícias começavam a ganhar sua cara moderna. A liderança de Nahildo inspirou o personagem Amarildo, líder comunitário interpretado por Pedro Wagner, na série O Jogo que mudou a história, da Globoplay, que conta a história do crime no Rio a partir de Vigário Geral e Parada de Lucas.

Enquanto viveu, Nahildo tentou diminuir, em vão, a influência dos traficantes em Vigário, que acabou sendo tomada pelo Comando Vermelho. Lucas, a comunidade vizinha, sucumbiu ao controle da facção rival, Terceiro Comando. Essa rivalidade impôs à população desses bairros uma rotina de disputas violentas entre grupos armados. A situação mudou apenas no começo deste século, quando Vigário e Lucas passaram a ser controlados por um mesmo grupo, o Terceiro Comando Puro (TCP).

Peixão assumiu a chefia do território unificado. Era um dos líderes do TCP e se tornou um dos traficantes mais poderosos do Rio. Ele foi ordenado pastor em uma igreja pentecostal da Baixada Fluminense, mas não abandonou o crime. Exerce sua autoridade carismática citando versículos bíblicos e pichando salmos nos muros. O discurso fundamentalista facilita suas alianças com milicianos e aumenta sua influência política, que ajuda a preservar sua liberdade. Ele nunca foi preso.

Peixão já revelou que se enxerga como um traficante escolhido por Deus para representar Seus interesses na terra. Ele soube disso durante um sonho, quando recebeu a missão divina de restaurar o reino de Israel no Rio de Janeiro. Ele próprio contou sobre seus devaneios em áudios de WhatsApp.

Conseguiu expandir o seu império para as comunidades de Cidade Alta, Cinco Bocas e Pica Pau. Batizou as cinco favelas que controla como Complexo de Israel. Algumas de suas atitudes se tornaram lendárias, como enviar carros-pipa com água e óleos ungidos para purificar a região dominada e expulsar demônios. O exorcismo é uma de suas obsessões. Assim ele justifica a perseguição aos representantes das religiões de matrizes africana no Complexo e na Baixada Fluminense, que ele e outros fundamentalistas neopentecostais associam ao diabo.

A tentativa de expulsão dos padres foi mais um capítulo de intolerância religiosa executada por seus homens armados. Peixão ministra três cultos por semana para seus soldados, com lições sobre a batalha espiritual em que ensina como a Bíblia pode ser distorcida e usada para justificar a violência.

A secretaria de Segurança Pública do Rio tentou diminuir a importância do caso. Mas a tensão permanecia elevada dois dias depois. As ameaças se concentraram sobretudo nos padres e seminaristas que não deixaram as paróquias nos primeiras dias. Ontem as missas voltaram a ser celebradas e receberam apoio de fiéis de bairros vizinhos. Muitos católicos continuavam se sentindo ameaçados. Segundo relatos de religiosos, eles estavam proibidos de usar camisas de santos, usar terços e cordões com crucifixo. O som das missas não poderia ser ouvido das ruas.

Tudo segue imprevisível. Não é fácil, afinal, compreender até onde chega a ousadia e as elocubrações místicas do traficante evangélico. Os riscos, por esse motivo, estão sempre à espreita. Esta semana, a Polícia Civil divulgou imagens em que drones são usados para mapear e atacar o território inimigo. Uma das imagens, segundo informações do jornal O Dia, mostra o lançamento de uma granada durante um voo sobre o Morro do Quitundo, em Brás de Pina. A explosão teria ferido cinco homens numa boca de fumo. O ataque, segundo essas investigações, partiu do Complexo de Israel.

(*) Bruno Paes Manso é jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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