O trote universitário: a festa da intolerância e humilhação feminina
A comunidade acadêmica e a sociedade acompanharam indignadas as notícias sobre os trotes das calouras da Faculdade de Agronomia e Veterinária (FAV) da UnB, que foram motivo de denúncia à Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) e estão, agora, sob sindicância.
É verdade que outros trotes em universidades brasileiras e estrangeiras ocasionaram vítimas com agressões físicas ou, mesmo, mortes. Por que, então, os episódios da FAV ou aqueles referentes ao “leilão de calouras” no Campus do Gama da UnB (FAG) geraram polêmica se não houve estudantes feridas ou se as participantes os consentiram?
Tamanha indignação decorre, especialmente, da violência contra as mulheres impetradas aí, não só àquelas que a vivenciaram, mas também pelo sexismo dirigido a todas as mulheres. A origem da palavra “trote” associa-se a uma marcha ensinada aos cavalos. Apenas o animal domesticado é capaz de desenvolvê-la. A transferência dessa idéia para marcar o ingresso das/dos estudantes nas universidades, desde a Idade Média, indica que as/os neófitas/tos devem ser iniciadas nas regras do mundo que adentram.
Ao serem-lhes apresentadas, tais regras trazem consigo conteúdos que explicitam, de modo simbólico, quem são e como devem proceder os grupos nesse ambiente desigual e competitivo, destacando manifestações de poder e obediência. Trata-se de reforçar identidades sociais e rotular aquelas/les que chegam e que ainda não estão vinculadas às panelinhas hegemônicas.
Por isso, ainda que o trote seja uma prática antiga, os significados de seus símbolos variam de acordo com o local, a época e seus componentes. Se as mulheres não tinham acesso às cadeiras universitárias no passado, obviamente, não havia mensagem para elas nos trotes.
Quais, portanto, os valores e interesses que estão presente nas “brincadeiras” de se fazer as calouras, em plano abaixo ao dos líderes, lamberem uma lingüiça lambuzada de leite condensado, numa representação vulgar de sexo oral? Serem leiloadas por seus atributos físicos, tendo como parâmetro estético aquelas tidas como “gostosas” para o sexo? Terem que declamar o juramento de que não diminuirão o “p.” dos veteranos, não ficarão barrigudas e carecas, assim como terem que ouvir dos calouros que estes as fornecerão para os veteranos, como se fossem propriedade daqueles e moeda de troca para garantir o bem-estar deles nesse meio?
Os cursos da FAV e da FAG são de diferentes engenharias e majoritariamente compostos por homens. O acesso de mulheres nesse campo do conhecimento vem sendo dificultado há séculos por idéias discriminatórias, como os dizeres populares de que as meninas não têm habilidade para os cálculos matemáticos e raciocínios lógicos, uma vez que são consideradas mais intuitivas e menos racionais que os meninos.
De modo assustador, reencontramos estes dizeres nos trotes, sendo agora as calouras destinadas a posições secundárias por terem suas marcas corporais e sexuais destacadas, não suas capacidades intelectuais. Esta é uma forma de enunciar-lhes através de cenas grotescas, bem como às mulheres em geral, que seu lugar ainda é o da passividade, do objeto de prazer masculino e da subjugação.
Pouco lhes adiantou esforço e estudo para superar as barreiras dos anos anteriores, ainda que quebrassem a regra patriarcal, revelando aptidão para ciências exatas. Afinal, não são reconhecidas em suas inteligências e autonomias profissionais no nível superior de ensino. No momento em que uma mulher ocupa o lugar do poder máximo da nossa república, deparamo-nos com episódios que visam frear o pleno desenvolvimento e cidadania de mulheres jovens e, em particular, ridicularizar esta grande conquista brasileira, ao postar-se travestido, o aluno-presidente do Centro Acadêmico da FAV, com peruca, vestido, faixa presidencial e lingüiça na mão para que as calouras dele se aproximassem e à sua frente vergassem.
Enquanto temos o modelo de uma nova sociedade na presidenta, em quem as mulheres podem se espelhar para legitimar seus percursos pelo espaço público, presenciamos atos misóginos de intensa força, já que partem do grupo próximo às calouras, no qual elas precisam se inserir para transitar durante a sua formação. Dificilmente uma delas irá contra a pressão dos veteranos e, se for, amargará a exclusão.
Embora a UnB seja uma das universidades que ostenta o maior número de estudantes do sexo feminino no país, rapazes marcam seus territórios de exclusividade ao saber científico, ao poder e ao mercado de trabalho. O trote não é uma mensagem enunciada ao longe às calouras e por pessoas vistas, de antemão, como hierarquicamente superiores. Não são professores que lhes dizem para entrar naquela que parece ingênua “brincadeira” – o que, talvez, facilitasse a tomada de consciência da violência aí existente.
Trata-se de um jogo do “micro-poder”, por ser posto em pauta por aqueles que são enganosamente tidos como seus colegas e que, portanto, não obrigariam ou não teriam autoridade para constranger ninguém a se submeter àquilo que não é de sua espontânea vontade. Puro engano, porque só ascenderão à posição de pares dos veteranos os calouros, homens, que cumprirem o juramento de que entregarão as calouras, que em tese seriam suas, aos mais velhos. E, no ciclo contínuo do trote, a estes novatos, caberão as futuras calouras.
Participar de trotes não é assunto privado, apenas de foro íntimo daquelas/es que o vivenciam diretamente. Estes ocorreram dentro da UnB, expressando-se publicamente. Mesmo que fosse fora da universidade, os trotes são de interesse geral, pois a relação entre as/os envolvidas/os é estabelecida via suas inserções nessa instituição de ensino, enquanto ditos colegas. Haja vista que, mesmo as relações domésticas e intrafamiliares estão sob a égide da Lei Maria da Penha, indicando à sociedade que o Estado se ocupa dos diversos tipos de violência impetrados até mesmo nas esferas mais pessoais, quer sejam por coações físicas ou psicológicas.
Não podemos aceitar práticas intolerantes e humilhantes às calouras. A comunidade universitária, instituições públicas e a sociedade esperam pela responsabilização e a erradicação de tais trotes, de modo emblemático e pedagógico. As regras de convivência na UnB devem se pautar pela ruptura com padrões sexistas antigos, exatamente por se esperar, nesse meio, a consolidação de um espírito crítico. O espaço acadêmico pressupõe a alta qualidade da formação profissional, bem como, e não menos importante, a formação cidadã.
As/os gestoras/es necessitam prestar cada vez mais atenção aos tratamentos e às oportunidades destinados a mulheres e homens no seu interior, garantindo-lhes dignidade, igualdade de direitos e equidade de condições. O combate a qualquer sorte de discriminação e violência, especialmente a qualquer aluna, deve ser uma das nossas primeiras lições de aula.
() Lourdes Bandeira e Tânia Mara C. Almeida são integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres (NEPeM) e Professoras do Departamento de Sociologia - UnB.