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Os aguapés e a Covid-19

Peter Schulz (*) | 20/05/2020 13:27

Acompanho os números da pandemia diariamente como imagino que os investidores devam fazer com os números da bolsa de valores e do câmbio. Não curto muito esse tipo de atividade, cultivada com esmero por grandes cientistas no presente e no passado, como John Dalton (1766-1844), químico, físico e meteorologista inglês. Todo mundo que já passou pelo ensino médio ouviu falar dele pela introdução da teoria atômica na Química, mas aqui é o meteorologista que me fascina. Dalton começou um diário meteorológico aos 21 anos de idade, que manteve por 57 anos, chegando, segundo estimativas, a registrar mais de 200 mil observações. Precursor de “big data”, levou a vida toda para coletar uma planilha Excel.

Isolado em casa (eu, não Dalton), no entanto, a paciência torna-se plástica e se a bolsa de valores continua não me interessando, as evoluções diárias dos dados da Covid-19 chamam constantemente a minha atenção via o painel de dados da Universidade Johns Hopkins. Uma das checagens quase rituais é verificar como andam os gráficos de novos casos diários para ver algum indício, mesmo que tênue e apenas por inspeção visual, de que o ritmo de crescimento se atenue ou comece mesmo a diminuir aqui no Brasil. Conclusões parciais desse hábito eu já resumi em outra crônica escrita há um já longínquo final de abril. O cenário mudou de lá para cá: começa-se a acompanhar mais detidamente a evolução em países que iniciaram o relaxamento da quarentena, observa-se uma terceira onda de disseminação no Irã e o número de casos em alguns países cresceu assustadoramente nos últimos dias. Aparentemente agora sob certo controle na Rússia, mas não na Índia, nem no México ou Peru (que rapidamente alcançou a triste marca de 100 mil casos), tampouco nos países africanos ou do Oriente Médio árabe. Nem no Brasil, que ultrapassou a Itália e a Espanha em casos confirmados e ultrapassará o Reino Unido enquanto escrevo.

Para um grupo nas redes sociais, esses números e tendências, assustadores para tantos é minimizado e desdenhado, como se aqui o problema não fosse real e urgente. Uma das alegações mais frequentes é de que os números absolutos não são significativos dada a grande população brasileira em comparação com as de outros países. Assim, 200 mil é muito em certos países, mas aqui seria talvez até insignificante estatisticamente.

Isso faz lembrar a história dos aguapés em um lago, famoso teste de lógica em entrevistas de emprego. A área coberta por essas plantas dobra a cada dia e em sessenta dias todo o lago estará coberto. Quantos dias são necessários para cobrir a metade do lago? A resposta é cinquenta e nove. Assim, imaginemos dois fazendeiros e seus açudes. Um gatuno coloca um aguapé em cada um deles. Um dos fazendeiros fica desesperado, pois de repente viu seu açude completamente coberto, enquanto o outro, com um açude quatro vezes maior (como aproximadamente a população do Brasil em relação a da Itália) ri-se do infortúnio do vizinho: ah, minha situação é tranquila, pois apenas pouco mais de 6% (1/16) do meu açude está coberto.  Mas em quatro dias, se nada for feito, esse açude quatro vezes maior do que o outro também estará totalmente coberto! Lembrei da história por causa dessas reações recentes, mas ela vem sendo usada como analogia desde o início da pandemia: “quando algo perigoso que cresce exponencialmente [ou nem tanto], tudo parece bem até que não é mais”.

O filósofo Toby Ord argumenta que somos bastante bons para aprender com as experiências recentes, mas muito menos aptos para antecipar potenciais catástrofes, que não têm precedentes na nossa memória de vida: “mesmo quando especialistas estimam uma probabilidade significativa para um evento sem precedentes, temos grande dificuldade em acreditar nisso, até que a experimentemos.”

Além disso, a negação se apoia em números como se esses não se modificassem. Os 240 mil infectados de agora, eram 34 mil há um mês e apenas 321 há dois. E não recuperamos mais de nossa memória os tempos de hiperinflação, éramos então atentos às urgências do bolso e sabíamos que os números perigosos subiam o tempo todo.

Com os números apresentados no parágrafo anterior, poderia vir nova alegação: no primeiro mês aumentou mais de 100 vezes (de 321 para 34 mil) e nesse último apenas 7. Mas nada indica um controle, regra de três não se aplica nesse caso, pois o gráfico não é uma escada com degraus iguais e representa o número total de casos cumulativo, somas de todos os dias anteriores. Assim é preciso olhar também para os casos registrados diariamente. No dia 16 de maio foram 13.200 novos casos no Brasil, um mês antes (16/4) 2.200 e há dois meses (16/3), 38. Para resumir em gráficos temos as imagens abaixo, a partir da mesma fonte dos números acima. O que se anuncia (gráfico menor) com o número de casos novos diários ainda crescentes é que, quando chegarmos ao estágio de controle (diminuição constante de novos casos devido ao isolamento social) da Itália, a curva correspondente ao Brasil no gráfico maior será inegável e igualmente triste também para aqueles que não ouvem os especialistas e perderam a memória de outras experiências de vida. Hoje são os que não acreditam no distanciamento social (hoje mesmo ainda flagro vizinhos saindo sem máscara de casa) enquanto os aguapés roubam o oxigênio e asfixiam os peixes no lago, pois não é uma gripezinha e assistimos o número crescente de mortes diárias.

(*) Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, em Limeira.

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