Para que serve (ou deveria servir) o licenciamento ambiental?
Dois eventos realizados no dia 2 de junho marcaram a volta do debate público sobre o projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Ambos contaram com a participação do deputado Kim Kataguiri, relator do projeto de lei 3729/2004. Desde a divulgação pública da quarta versão desse projeto, no ano passado, aguarda-se a veiculação da versão mais recente.
No debate matutino, pautado pela questão do retorno dos investimentos após a pandemia, foi notável a falta de consenso sobre a finalidade do licenciamento ambiental. Um dos debatedores defendia que o “licenciamento ambiental nada mais é que um ambiente de gestão de conflitos”, enquanto outro convidado, também experiente no ramo, sustentava que o conteúdo técnico dos estudos voltados para licenciamento deve ser valorizado.
Ora, a literatura acadêmica sobre avaliação de impactos e licenciamento ambiental é amplamente convergente nesse ponto: o licenciamento ambiental deve ser multifuncional. Quais são as suas funções?
Em primeiro lugar, dar fundamento técnico a decisões públicas sobre empreendimentos que afetem os recursos ambientais, os meios e os modos de vida das comunidades, e a capacidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades. Compreender essa função primordial tem importante consequência prática: não pode haver obrigação de que uma licença seja concedida, e muito menos de que seja aprovado o projeto tal qual pretendido pelo empreendedor – é necessário desenvolver alternativas de menor impacto e demonstrar sua viabilidade ambiental.
Por isso, outra função do licenciamento é garantir que os projetos submetidos à aprovação governamental contenham medidas para evitar ou minimizar seus impactos negativos – e inclusive para compensar os chamados impactos residuais, por exemplo, mediante reposição florestal.
A terceira função do licenciamento ambiental – sempre embasado em estudos técnicos – é definir as medidas a serem tomadas para que o empreendimento seja construído e funcione com o menor impacto adverso possível, atendida, ainda, sua viabilidade econômica.
É no licenciamento que são estabelecidos os requisitos para a gestão ambiental. De certa forma, o licenciamento nunca termina, como bem lembrado pela ex-presidente do Ibama Suely Araújo no debate vespertino, fato que não é reconhecido no projeto de lei. A cada projeto aprovado, cresce o estoque de empreendimentos na carteira dos órgãos ambientais e que demandam acompanhamento.
Finalmente, o licenciamento serve, sim, como espaço de negociação. Dessa forma, é efetivamente um ambiente de gestão de conflitos, mas se o for exclusivamente, será esvaziado de todo o conteúdo técnico, que é e deve ser sua fundação. Entretanto, para que a função de gestão de conflitos seja exercida, é preciso transparência e pleno cumprimento ao Princípio 10 da Declaração do Rio (1992), sobre participação cidadã em matéria ambiental: acesso à informação, participação nos processos decisórios e acesso à Justiça. Esses princípios foram recentemente reafirmados pelo Acordo de Escazú, tratado internacional promovido pela Comissão Econômica para a América Latina da ONU (Cepal) e assinado pelo Brasil (mas ainda não ratificado).
Tanto a participação pública efetiva quanto a qualidade técnica dos estudos que embasam o licenciamento estão longe de serem garantidas pelo projeto de lei. O deputado Katiguiri resumiu uma história que lhe foi recentemente contada por um governador: o Estado pagou milhões por um estudo de impacto ambiental feito como “cópia e cola” de algum estudo anterior. Justamente aqui está o cerne na questão.
Quem aprova esse estudo? Uma Secretaria de Meio Ambiente cujo titular é nomeado pelo governador. E quem define qual deve ser o conteúdo desse estudo e quem o analisa tecnicamente? Funcionários que deveriam ter condições materiais e técnicas para executar seu trabalho de modo eficaz e eficiente, seguindo todos os princípios da administração pública. Em muitos Estados, essas condições sempre estiveram ausentes ou vêm se deteriorando.
Por isso também é importante que a lei estabeleça os critérios mínimos de exigência desses estudos, porque sabemos que toda a regulamentação infralegal está ameaçada, como declarou o ministro do Meio Ambiente Salles na famigerada reunião de 22 de abril no Palácio do Planalto. O Conselho Nacional de Meio Ambiente, esvaziado e enfraquecido, agora tem baixíssima capacidade de estabelecer regras gerais.
Para qual finalidade será usada a nova lei depois que vier a ser aprovada? Para garantir um carimbo e facilitar a “passagem da boiada”, como quer o ministro que mais parece da Agricultura do que do Meio Ambiente? Ou para informar e dar transparência ao processo decisório, deixando claro publicamente quais são as implicações – positivas e negativas – para o meio ambiente dos empreendimentos licenciados?
(*) Luis E. Sánchez é professor titular da Escola Politécnica da USP.