Pessoas com deficiência, ERE e a volta da inacessibilidade
O mundo está passando por uma situação pandêmica – ainda. E digo situação pandêmica porque não podemos cair na tentação de dizer que a pandemia é apenas um vírus ou uma doença. Não. A pandemia é causada também pelas estruturas sociais desiguais nas quais estamos inseridos. O trabalho do professor Jean Segata, do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS, por exemplo, mostra o quanto uma pandemia é feita principalmente por um conjunto de fatores que são agravantes quando somados ao vírus.
Nesse contexto, as pessoas com deficiência (PcDs) são parte dos marcadores sociais que mais sofrem com a pandemia. Isso porque a sociedade é estruturalmente capacitista, não levando em conta os corpos deficientes como parte de si. E isso produz modos de interação que são estratégicos, e até artísticos, por parte das PcDs para que possam (sobre)viver no seu dia a dia.
As acessibilidades são sempre complexas em relação às PcDs, visto que cada corpo tem suas especificidades – e por isso mesmo argumento que o que se deve mudar é a estrutura social para que a sociedade passe a considerar os corpos deficientes como parte constituinte de si. E, na pandemia, com o Ensino Remoto Emergencial (ERE), a acessibilidade foi um termo que voltou a aparecer.
Imagine uma pessoa cega tendo de acessar uma aula online… Quais problemáticas podem surgir? Como gerar acessibilidade? Como pensar um corpo com dificuldades de ficar ereto em frente a um computador por horas?
Esses questionamentos são muito importantes e apareceram com mais força durante a pandemia – não tanto quanto seria o ideal, mas ao menos em espaços nos quais corpos deficientes estavam presentes (o que já demonstra a importância da presença corporal das PcDs nos espaços). E muitas estratégias foram criadas, programas foram modificados (por exemplo, o Google Meet tem legendas geradas automaticamente), aulas foram pensadas no sentido de permitir o acesso aos diferentes corpos.
No entanto, e aqui entro no assunto central deste texto, seremos competentes em manter em foco a necessidade das acessibilidades para as PcDs quando voltarmos ao ensino presencial? Ou melhor: conseguiremos manter, se for o caso, um ensino híbrido, pensando nas pessoas que precisarem de ensino remoto para que não tenham seus estudos prejudicados?
As questões que aqui trago parecem ser distantes, mas dizem respeito ao nosso cotidiano em muitos aspectos. Para muitas pessoas, sair de sua casa e ir até um câmpus universitário é bastante complicado – por questões financeiras, de estrutura, de tempo, de acessibilidade. Pensar maneiras diferentes de se acessar o ensino é pensar também maneiras de considerar os corpos em suas diversidades e especificidades.
Voltaremos ao ensino presencial, em algum momento, e sabemos que com isso voltarão também as inacessibilidades – isso porque elas não deixaram de existir durante a pandemia; pelo contrário, parecem ter-se ampliado. É preciso, porém, começarmos a levar a sério as questões de acesso às PcDs. Estas estão cada vez mais entrando nos espaços de ensino, e destes estão sendo exigidas mudanças. A pandemia escancarou diversas inacessibilidades, mas pode ser também um momento de pensarmos como estamos lidando com os nossos colegas, nossos estudantes, as pessoas que estão presentes na Universidade.
Os ambientes de ensino são pretensamente inclusivos, como já argumentei em minha dissertação. E essa pretensão tem de passar a ser atualizada, presentificada.
Há inumeras injustiças de acesso às universidades, que recortam marcadores sociais de raça, gênero, sexualidade, classe, deficiência. Percebemos isso no dia a dia quando estamos no ambiente universitário. E a pandemia nos fez perceber essas questões ainda mais.
Coloco em xeque, portanto, se vamos conseguir não deixar que essas questões voltem a ser camufladas, escondidas ou diminuídas. Penso que podemos fazer melhor do que estamos fazendo. E o momento é este. O contexto em que estamos vai passar, mas é preciso que ele passe e que nós não voltemos a um passado preconceituoso. É preciso construir um novo, um diferente, uma sociedade mais inclusiva e que comece de fato a levar em consideração os corpos divergentes. O momento é agora, não podemos deixar passar.
(*) Jéferson Alves é doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), bolsista CAPES e participa como pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/UFRGS).