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PL para inibir extração ilegal de ouro precisa ser aprimorado

Por Gabriel Mota Maldonado (*) | 24/12/2023 13:30

A justificativa central para a confecção do Projeto de Lei nº 3.025/2023), como está em sua exposição de motivos, é a existência de “brechas” legais que permitiriam o “esquentamento” do ouro ilegalmente produzido. Como consequência dessa realidade, a legislação atual promoveria a exploração mineral ilegal, causando, assim, problemas socioambientais e humanitários. O objetivo do projeto é, portanto, inibir as práticas extrativas ilegais e as violações que essas práticas subvencionam. Há, nesse sentido, razões para elogiar o texto, sobretudo por suas intenções imediatas, que são evitar a extração ilegal de ouro, a posterior introdução desse minério no mercado legal e a destruição do patrimônio natural e deterioração das condições de vida dos povos originários.

Para tanto, o PL esclarece que o ouro produzido sob o regime de permissão de lavra garimpeira (PLG) só pode ser vendido a instituição financeira (artigo 2º, caput) e que somente o titular da PLG (cooperativa ou garimpeiro) ou seu mandatário legalmente constituído e registrado em sistema da ANM podem fazer essa venda (artigo 2º, §1º). Assim, o projeto impõe obrigações ao vendedor, ao primeiro adquirente (instituição financeira) e a todos aqueles que atuam no mercado, criando também, correspondentemente, tarefas aos órgãos e entidades públicas atuantes na mineração. Essas novas obrigações são o núcleo do PL, pois criam instrumentos cujo propósito é aprimorar a capacidade de monitoramento e controle a fim de restringir os espaços para a legalização de minerais produzidos ilegalmente, evitando-se o chamado “esquentamento”.

Em que pese a necessidade de evolução normativa, a discussão legiferante precisa contemplar os elementos essenciais da conversa quando se trata de extração mineral ilegal como um todo e do mercado de ouro ativo financeiro em si.

É que limitar a discussão sobre “controle de origem, compra, venda e transporte de ouro no território nacional” a mecanismos de controle da primeira venda e do transporte do ouro produzido sob o regime de permissão de lavra garimpeira, como o faz o PL em comento, contribui apenas parcialmente para a organização e a racionalização da mineração de ouro no Brasil, já que, como se sabe, mineradores e adquirentes de ouro proveniente de PLG já possuem hoje obrigações documentais que entregam às autoridades informações essenciais para a fiscalização da origem do ouro, modelo que pode e deve ser aprimorado, mas que pouco se incrementa se os órgãos fiscalizadores não forem dotados de ferramentas e pessoas aptas a captarem e usarem essas informações.

Antes de criar , seria, sem embargo, necessário, por exemplo: criar instrumentos e determinar o cruzamento de informações comerciais (especialmente a exportação) com dados transmitidos pelos produtores à Agência Nacional de Mineração (ANM), sobretudo o relatório anual de lavra (RAL); criar condições e determinar aos órgãos de controle a sofisticação de seus aparatos e métodos de fiscalização e a adoção de ferramentas virtuais que automatizem alertas e desconformidades evidentes; promover uma convergência entre as datas de recolhimento de rendas e tributos devidos pela comercialização mineral; capitalizar humana e tecnicamente e impedir que a ANM tenha seu orçamento contingenciado.

São, enfim, algumas das ferramentas que dariam concretude ao propósito de diminuir o “atual custo socioambiental e financeiro do modelo vigente de ingresso no mercado formal do ouro oriundo de áreas de garimpo”, pois fazem com que o Estado e a sociedade tenham condições reais de controle e supervisão da atividade extrativa. Do modo como está, o projeto de lei, modificado ou não conforme a proposta do relator, caso aprovado, s.m.j., pouco ou nada contribuirá para a segurança almejada em sua justificação, exatamente porque cria obrigações que se substituem às atuais, mas que continuam não sendo verificáveis e fiscalizáveis de forma ágil e eficaz.

Esse elemento compromete nuclearmente a norma em gestação. A falta de elementos essenciais para que a norma cumpra com seus objetivos gera um problema de eficácia normativa, índice que afere a plausibilidade dos corolários concretos da lei, “sua aptidão de produzir, de fato, os efeitos queridos por seus autores”. Verdadeira condição de validade da norma jurídica, a eficácia da lei é também prejudicada quando “a exigência nela contida é impraticável”, como é o caso quando o núcleo do Projeto de Lei nº 3.025/2023 determina aos particulares (vendedores e compradores) obrigações que dependem por completo de iniciativas das autarquias reguladoras, sem dar a estas, sobretudo à Agência Nacional de Mineração, meios materiais para realizar o seu múnus.

Sabendo-se que a ANM possui dificuldades crônicas no exercício das competências que a legislação impõe para a regulação e fiscalização do setor mineral brasileiro, as determinações do PL, ao ignorarem esse fato, acabam por impor exigências impraticáveis que, ao fim, podem esvaziar todos os direitos minerários outorgadas para a produção de ouro.

Dessa forma, nenhum dos documentos criados e exigidos pela normativa proposta, ainda que carregue informações necessárias ao controle da comercialização do ouro, garante firmeza na fiscalização da origem, justamente porque parte das informações prestadas pelo vendedor (cuja identidade não pode ser verificada com base nos mecanismos estipulados pelo PL nº 3025/2023) e não assegura o cruzamento com dados de produção (cruzamento que deveria, como visto, ser feito automaticamente pelos órgãos de controle). Em outras palavras, ao que indicam as determinações propostas originalmente, a profusão de obrigações de cunho documental até faz sentido em tese, mas, na prática, apenas cria um novo regime de transmissão de informações, sem atacar o problema da dificuldade de realizar o cruzamento de dados e a fiscalização da produção.

Há, ainda, algo a se ponderar quanto a itens específicos do projeto de lei enviado pelo governo federal, sobretudo quanto às responsabilidades dos integrantes não produtores da cadeia de ouro. Como resultado disso, o comando do artigo 4º, §2º da proposta original parece impor a responsabilização cível e criminal pela extração irregular de minério de todos os que emitem GTCO, inclusive dos compradores, que, conforme se depreende do texto, serão também responsáveis pelas informações prestadas “sobre o ouro vendido e transportado”, e não somente sobre a transação em si. Assim, as instituições financeiras poderiam ser responsabilizadas, por exemplo, por informações que só podem ser produzidas pelo vendedor como seus dados completos (artigo 4º, §6º, I e VII) e os dados de origem do minério (artigo 4º, §6º, II), o que parece contrariar o Código Civil e a legislação consumerista.

Especificamente, há outras ponderações a serem feitas, que dizem respeito a temas variados da norma, algo que deverá ser aprofundado tendo como parâmetros regras e princípios constitucionais — como o da livre iniciativa, o da impessoalidade e o da legalidade — e as determinações legais que asseguram o desempenho de direitos particulares, dando limites e estipulando diretrizes ao poder público. Certamente, novas interpretações darão azo a discussão, o que se espera seja capaz de aperfeiçoar o texto e, consequentemente, o regime jurídico do ouro produzido e comercializado no Brasil.

De todo modo, as regras propostas no projeto de lei (e no seu substituto) possuem características e fundamentos próprios e, como bem se reconhece, interagem de forma positiva com as funções que a União desempenha enquanto dona dos minerais extraídos em território nacional (artigo 176, caput, CF/88) e administradora de sua produção, distribuição, comércio e consumo (artigo 1º, caput, Código de Mineração), além de guardiã dos direitos dos povos originários e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigos 225 e 231, CF/88).

Sob esse olhar, tendo em consideração os princípios de direito, as normas constitucionais e a realidade técnica e social do mercado de ouro ativo financeiro e da mineração realizada sob o regime de permissão de lavra garimpeira, alguns pontos do Projeto de Lei nº 3.025/2023 deixam a impressão de que o Poder Público — e a sociedade, se mantido os contornos principais do texto — perde a oportunidade de avançar de fato em direção à sustentabilidade mineral, pensando-a não como um adendo ao controle e fiscalização necessários, mas como uma marca da compreensão holística sobre os negócios a serem realizados com o patrimônio mineral e ambiental brasileiro, algo que certamente provocaria uma mudança de paradigma na legislação nacional sobre o tema.

De modo geral, a falta dessa percepção faz com que as questões documentais/burocráticas sejam vistas como o problema, enquanto elas são, na verdade, sintomas: suas falhas e dificuldades apenas compõem com uma realidade complexa, que não se resolverá com soluções simples e que deve ser atacada tendo em vista todo o circuito socioeconômico atingido pela atividade mineral.

Por isso, a transformação pretendida depende da inclusão no ordenamento jurídico de mais do que determinações de comando e controle, pois a governança é um meio que garante condições mínimas para a confecção de estratégias que envolvem parâmetros como o bem-estar e a justiça sociais. Como “uma maneira de definir objetivos de uma sociedade que funciona bem, que oferece bem-estar aos seus cidadãos no presente e no futuro”, o desenvolvimento sustentável impõe ao Estado o respeito à complexidade de cada setor e a assimilação de ferramentas que deem coerência e harmonia entre a legislação, as políticas públicas e os compromissos internos e externo do País.

Para tanto é preciso compreender e estender sobre a realidade a cobertura legal adequada. Como aduzem vários trabalhos, de instituições reconhecidas, como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), a contenção das externalidades da mineração de ouro em pequena escala só é possível se se compreender o contexto “técnico, social, econômico e político” em que os mineradores estão inseridos, reconhecendo que as políticas e estratégias que busquem adequar as atividades aos ditames da sustentabilidade devem levar em conta elementos que vão muito além dos aspectos normalmente centrais. Trata-se de “um setor complexo e diversificado”, que pode ser, ao mesmo tempo, “uma importante fonte de renda e uma preocupação ambiental”,  mas que se configura como uma “oportunidade de desenvolvimento”, cuja consagração depende de “conhecimento e compreensão da realidade, inovação, financiamento e vontade” que só existem se houver um suporte normativo coeso e avançado, sem o qual “as políticas tendem a ser incoerentes, instáveis, mal direcionadas, contraproducentes ou ineficientes, e cheias de contradições entre legislação, retórica normativa e aplicações práticas”.

Como visto, essa posição não implica fechar os olhos para as ilegalidades. Ao contrário, ela promulga o respeito à legalidade como cerne da atividade econômica, o respeito à legalidade tal qual ela deve ser compreendida: como um todo, com fundamentos e funções que precisam se complementar e se integrar ao sistema jurídico. Nesse sentido, entidades como a OCDE, o Banco Mundial, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) [13] e o IGF, por exemplo, que reconhecem há tempos as potencialidades da mineração em pequena escala como contribuidora para o desenvolvimento sustentável, mostram que a discussão deve evoluir para trazer para o centro do debate os propósitos fundamentais do País. Mais do que isso, buscando ocupar sua devida posição nas discussões internacionais que pautam a exploração das riquezas naturais, o Brasil pode revolucionar o modo como um setor responsável por sustentar diversas regiões do País é visto e gerido: pode ser, enfim, protagonista de sua própria história e líder de um tempo que ressignifica todo o processo econômico.

Para tanto, o PL nº 3.025/2023 deve ser encarado como um ponto de partida que precisa ser aperfeiçoado, sobretudo em sua condição de efetividade, sem a qual a ausência de exequibilidade tornará qualquer lei letra vazia e a frustração aprofundará o cisma entre as expectativas sociais, o Poder Público e as instituições jurídicas.

(*) Gabriel Mota Maldonado é internacionalista e advogado, mestre e doutorando em Direito (USP) e foi diretor do Departamento de Desenvolvimento Sustentável na Mineração, do Ministério de Minas e Energia.

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