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Processos da legislação nacional e do diálogo com povos indígenas

Amanda Villa Pereira (*) | 24/07/2021 10:30

A comunicação através de palavras, faladas ou escritas, ocupa uma posição de valiosa relevância na sociabilidade humana; dizer isso é quase tão banal quanto afirmar que, nas palavras da linguista Eni Orlandi, “também o que não é falado significa”. Travar uma comunicação verbal nem sempre é possível, como no caso das instituições e comunidades que de alguma forma se correlacionam com povos indígenas em isolamento. No caso daqueles que habitam a Terra Indígena Massaco (RO), por exemplo, a presença de uma comunicação verbal interna é uma certeza, mas o pertencimento linguístico desta fala nunca foi decifrado, e tampouco houve sequer a tentativa do estabelecimento de um diálogo através da fala com estes grupos, por determinações éticas.

Se é possível que haja uma transmissão e uma recepção de mensagens entre indígenas em isolamento e aqueles exógenos a eles – como servidores da Funai e habitantes de territórios contíguos –, o esforço para esta comunicação se dá de forma não verbal e distanciada. Esse caminho parece entrelaçar-se com o “silêncio fundador”, descrito por Orlandi como um silêncio repleto de significado em si, já que, nesse caso, pertence à escolha de se manterem afastados, e não dialogar verbalmente. Tendo em vista a importância da comunicação nos processos de coexistência social, e os esforços indigenistas de extração de informações sutis para além do que se encontra explícito nos modos de comunicação, por que ainda há tanta dificuldade e tensão no diálogo entre comunidades indígenas que buscam ser ouvidas e o Poder Legislativo?

A pauta indígena está presente diariamente na grande mídia com demandas em relação a ameaças aos direitos já adquiridos. O comprometimento das garantias legais pelas quais lutam muitos povos levou a uma crescente busca por serem ouvidos, seja nas recentes manifestações contra a aprovação do Projeto de Lei 490 em Brasília, através do Levante pela Terra, ou utilizando das redes sociais e da facilidade da internet para aumentar o alcance de sua palavra.

O PL 490 propõe alterações no Estatuto do Índio, em vigor desde 1973, mas também em quase a totalidade dos direitos garantidos por lei aos grupos indígenas. A promulgação do Estatuto instituiu uma normatização mecânica demarcatória que dotou a Funai de ampla autonomia administrativa para demarcar e regularizar as terras indígenas, estando sob sua competência o reconhecimento de posse, a identificação territorial, a delimitação e mesmo a redação da minuta do decreto presidencial com o respaldo da demarcação administrativa. Neste período, muitos movimentos indígenas emergiram na cena política nacional, voltados a intervir no processo da Constituinte e aprimorar a legislação indigenista. Ao mesmo tempo, seguiam firmes os esforços governamentais para a colonização das fronteiras do País e dos próprios costumes indígenas.

Na ideia do governo e dos parlamentares que dividiam os indígenas entre aculturados e não aculturados nos anos 1980, somente aqueles considerados não aculturados teriam direitos como “índios” (sic). Devido à grande pressão exercida pelos povos indígenas, no entanto, ficou definido na Constituinte o oposto: independente do contato e do tempo em que ele ocorre, a organização social, os costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas devem ser respeitados e protegidos (Constituição Federal de 1988, artigo 231). Também o Estatuto do Índio, embora ainda não tenha sido revogado, foi superado pela Constituição de 1988, que retira o caráter integracionista daquele e promove a autonomia e o direito à diferença dos povos autóctones.

Em 1991, o Decreto 22 dá os primeiros passos em direção a um procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas em acordo com a nova Constituição, amenizando as iniciativas, agora inconstitucionais, do decreto anterior. Já em 1996, o Decreto 1.775 veio a modificar uma vez mais – e estendendo-se até os dias atuais – o dispositivo que se refere ao diálogo entre as partes, inferindo que o grupo indígena envolvido deverá participar do procedimento de demarcação em todas as suas fases, representado segundo suas próprias formas. Também foi a partir desta década que o emprego de antropólogos em processos judiciais no Brasil tornou-se efetivo.

Com as alterações propostas pelo PL 490, a demarcação de terras indígenas passa a ser estabelecida através de leis, um processo bastante distinto do atual. De uma decisão comandada pelo Poder Executivo, representado pela Fundação Nacional do Índio, em conjunto com especialistas antropólogos e com as comunidades indígenas envolvidas, transfere-se a responsabilidade ao Poder Legislativo, o Congresso Nacional. Proposto no ano de 2007, o projeto já foi arquivado por três vezes, mas retorna em consonância com o ideário do atual governo, que aposta em mudanças na Constituição Federal para a exploração territorial de áreas mais preservadas.

A obrigatoriedade da participação dos grupos envolvidos para o processo de delimitação territorial, somada à proibição do contato com povos que evitam interação – chamados, em geral, de “em isolamento”, por sua autodeterminação –, deu origem a práticas criativas de comunicação nestes processos. As equipes técnicas responsáveis passaram a atentar-se a rastros, vestígios, documentos históricos, relatos, análises de imagens via satélite, entre outros esforços indiretos de conhecimento do contexto histórico e atual do território que nomeei anteriormente de uma “comunicação não verbal”.

A partir desses esforços, o Brasil, embora com um histórico muito violento contra os povos indígenas, passou a ser uma referência mundial em técnicas de demarcação territorial. A atual Constituição brasileira é uma ferramenta de validação das diferenças, e possui entendimentos harmônicos com a consulta prévia nos termos da importante Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. É por conta desse vasto histórico de luta por um diálogo de respeito entre mundos que a votação arbitrária do Projeto de Lei 490 é tão violenta: não apenas fere o direito à consulta prévia dos povos indígenas no Brasil, mas também interrompe um longo processo de comunicação que visa a assegurar a coexistência de diferentes modos de vida.

(*) Amanda Villa Pereira é doutoranda na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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