Professor, pra que serve a História?
Alex nem mesmo deixou-me iniciar a dissertar sobre Ištar e outras deusas e deuses mesopotâmicos e lançou uma pergunta certeira, no centro de um velho problema que sobrevive sem cessar no imaginário de professores de História: professor, pra que serve a História?
A pergunta tinha um misto de inquietação e provocação. Inquietação por tentar entender, afinal de contas, porque a Mesopotâmia poderia ser um conteúdo para a aprendizagem em uma turma de estudantes do Brasil, mais ou menos 5.000 anos à frente; provocação para deixar o professor numa situação embaraçosa, a se desdobrar em argumentos, sempre paliativos, para explicar, talvez, o inexplicável: pra que serve a História?
E a pergunta não parou aí. Ainda sem esperar o início da minha resposta, Alex amplia o questionamento e dispara a dúvida mais insistente em habitar as memórias de professoras de História: pra que precisamos estudar História?, qual sua utilidade?.
Esse último questionamento quase, no plano da memória ou do inconsciente, talvez sem querer, soou como Nietzsche, em suas incríveis Considerações Intempestivas (as Segundas), questionando o historicismo alemão, razão de todas as nossas críticas, sobre “o valor da história para a vida”.
Alex, em seus inquietos 15 anos, suscitou repetidos questionamentos e dúvidas.
Mas a pergunta talvez tenha decorrido também de uma memória que nos constitui, em nossa branquitude, que mostra como o lucro e a utilidade, hábitos comuns desse modo de vida criado nesse lugar que chamamos, não sem razões políticas, de ocidente, nos fazem sempre procurar em todas as coisas seu valor de utilidade e de lucratividade.
Bem, seguiu-se um certo burburinho e alguma algazarra após as perguntas de Alex. Mas não respondi.
Fiquei em silêncio e segui com a aula.
Entretanto, num breve intervalo, quando todos os alunos e todas as alunas se punham a realizar uma atividade, fiquei desenhando mentalmente uma resposta que passo a descrever:
A história não serve. Ela cria mundos. Ela é uma máquina que faz ver ou que faz desaparecer. Ela brinca com o tempo. Ela mostra o mundo ao mesmo tempo em sua rugosa seriedade e em sua leve inocência. Ela amplia nossa potência de vida.
A História não é um bibelô que serve para meros propósitos utilitaristas (ou é, para muitos). Não comemos história. Também não comemos poesia. Aliás, somente o que devemos comer mesmo são alimentos saudáveis.
A História é como a poesia, são forças que, paradoxalmente, ampliam a nossa vida, nos deslocam do mundo pequeno, egocêntrico, narcísico – do mesmo e do semelhante -, em que, via de regra, passam nossos dias.
A História é como a poesia, necessitamos dela como de um pedaço de pão, mas não sabemos exatamente por quê, não temos explicação ou argumento convincente, como temos, em boa parte das vezes, para o pão (isso também vale, sim, em alguma medida, para a História). O plano da explicação somente serve para ampliar um debate estéril, fortalecendo (e muito) os conhecidos negacionistas, que querem ter opinião sobre tudo, principalmente sobre História, e que, desse modo, sugerem ser a História mera questão de opinião. Desse modo, nos fazem estar o tempo todo a ter que responder insistentemente sobre a importância ou necessidade da História, o que nos faz o tempo todo racionalizar o que, por vezes, não pode ser racionalizável.
A História é como a poesia, ainda que não se identifique com esta última; no mundo das formas elas têm nomes diferentes, têm significados diferentes, tem até lugares diferentes de manifestação; mas no mundo energético (penso nos estóicos) têm a mesma função: ampliar nossa potência de viver.
E se Alex estivesse a partilhar o desenho que eu esboçava mentalmente, eu lhe diria: não tente medir a potência, apenas perceba como essa ampliação que se dá a partir de sua aprendizagem com a História (também com a poesia) lhe permite ver mundos que nunca havia visto; ver presentes que nunca haviam existido; ver pessoas e seres que nunca estiveram em sua mesa de jantar ou na tela do seu celular; sentir emoções que nunca sentira; sentir gostos e desejos que jamais pensou que pudessem existir; ter encontros com mundos inimagináveis; e, mais, imaginar futuros que nunca imaginou.
A História não serve. Ela não dá lucro nem dinheiro. Ela amplia os nossos sonhos ao ilimitado. Davi Kopenawa diz que o homem branco sonha, mas sonha sempre consigo mesmo, num círculo narcísico que lhe faz ver tudo e todos como artifícios para lucrar e ganhar “dinheiro”. Ao contrário, Ištar, deusa guerreira e feminina, e os deuses e deusas mesopotâmicas não nos dão lucro nem explicações rápidas sobre o que acontece com a nossa atualidade (nem duradouras). Elas (as deusas mesopotâmicas) são como singularidades que destoam de todas as nossas determinações (sobretudo dessa atualidade sufocante) e ampliam nossas forças de vida, nos fazem experimentar a essência de tudo o que existe: a potência mesma do existir.
Logo, Ištar e os deuses e deusas mesopotâmicas nos tiram tanto da vigília (em que estamos mergulhados neste “presente eterno”) quanto do sonho narcísico para sonhar sem limites e, depois, num estado sonâmbulo, meio embriagado, de vigília e sonho, poder imaginar outros mundos, relações, sentimentos, emoções, convivências, problemas, respostas.
A História não é servil. Nem dá lucro. Nem faz acumular dinheiro. Ela alimenta a vida com forças, como a poesia.
Depois de aproximadamente 10 minutos desse desenho que acabei de compor, levantei da cadeira mais leve e, calmamente, disse: vamos conversar sobre religião, religiosidade, diferença…
Ao final do período, fizemos a leitura silenciosa do poema de Manoel de Barros:
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
(*) Nilton Mullet Pereira é professor do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS