Quantas vidas vale um clique?
É urgente abrirmos um debate sério sobre ética e responsabilidade da imprensa na divulgação de notícias científicas e sanitárias. Especialmente em momentos como esse, quando a desinformação pode significar muitas mortes.
Uma matéria publicada esta semana pelo G1 teve o seguinte título: “Morre voluntário brasileiro que participava dos testes de Oxford; laboratório não diz se ele recebeu vacina ou placebo”.
Os autores não falham por incorreção. Falham por não terem feito uma análise criteriosa sobre as consequências da escolha de manchete com tal nível de sensacionalismo sobre um tema sensível e recentemente politizado.
Testes clínicos de vacinas são desenhados criteriosamente. Neles, se calcula com antecedência o número de voluntários necessários para que o estudo tenha poder estatístico e, assim, poder concluir se a vacina funciona ou não. Ou seja, do ponto de vista estatístico, um evento adverso ou fatalidade que ocorra com qualquer voluntário do estudo, seja ele do grupo placebo ou vacinado, não significa nada isoladamente. É a estatística que deve determinar a relevância do evento, não a manchete de jornal não baseada nela.
Cada vida importa. Uma fatalidade em um estudo, independente da relevância estatística, significa tudo para familiares e amigos. Não se trata, portanto, de diminuir a importância do fato ou a dor dos entes queridos da vítima. Dados como esse podem ser reportados, mas as consequências da notícia devem ser pesadas. As vacinas são, sem dúvida, as melhores estratégias para sairmos da pandemia. Em tempos de infodemia (uma “epidemia de informações”), notícias são rapidamente repassadas apenas baseadas em seus títulos. E, para muitos, o título é quase a própria notícia. Manchetes que geram dúvida e insegurança contra vacinas poderão custar vidas.
Esta discussão não é exclusiva dos tempos de hoje. Nós conseguimos imaginar a cena nos filmes com um menino tentando vender jornais na rua e gritando “Extra! Extra!”. Manchetes são importantes para capturar a atenção do leitor (e vender o jornal). Só que a internet hoje transforma milhões de pessoas em meninos gritando “Extra! Extra!” para outros milhões de pessoas. O impacto de nos atermos apenas à manchete é muito maior do que antigamente.
Por isso, é cada vez mais importante que se faça uma avaliação criteriosa sobre como o título de uma matéria pode ser interpretado, e quais os impactos de tais interpretações. No caso em questão, será que os prós da manchete chamativa, que rende cliques e atenção, se sobrepõem aos efeitos negativos de aumentar a desconfiança a respeito das vacinas? Quantas pessoas deixarão de se vacinar por causa disso? Quantas vidas vale um clique?
(*) Daniel Bargieri é professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (Universidade de São Paulo), e Helder Nakaya é professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.