Remédios: o conto da “suspensão dos reajustes”
No dia 31 de março, o presidente da República, por meio da medida provisória nº 933/2020, determinou a suspensão do reajuste anual dos preços dos medicamentos por 60 dias, em decorrência da pandemia do novo coronavírus. O objetivo, segundo noticiado, foi o de segurar os preços dos medicamentos diante da pandemia.
Medida é insuficiente para refrear aumentos nos preços destes produtos, que com ou sem reajuste anual, já estão ocorrendo. A razão: os reajustes estipulados pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) não incidem diretamente sobre os preços dos medicamentos, mas sim sobre um teto de preços. E o teto é tão elevado que ele acaba não exercendo pressão alguma sobre a dinâmica de preços no varejo.
Existe, hoje, uma política de descontos artificiais feita por farmácias, distribuidoras e indústrias, que lhes permite oportunamente aumentar o preço, até de forma predatória. Tais políticas têm ainda uma segunda consequência, de nublar o dimensionamento do consumidor sobre qual é o preço real de um dado medicamento. Num mercado em que já falta informação sobre os fatores que impactam o preço final do bem, tal política de descontos aprofunda o desconhecimento acerca do seu valor real, o que, convenhamos, neutraliza a própria função do preço, que é dar a noção de valor de qualquer bem.
Exemplos não faltam para ilustrar o problema. O caso do medicamento Sofosbuvir, que cura 95% dos casos de Hepatite C, nos mostra como foi possível a uma indústria e suas distribuidoras praticarem preços que variaram entre R$ 64,94 e R$ 956,87 o comprimido. Tudo dentro do teto da CMED. Outro exemplo é o do medicamento Trastuzumabe, empregado no tratamento de câncer de mama. Embora não incorporado para emprego em fase terminal do câncer, a judicialização feita por usuários do SUS para fornecimento do medicamento nessas situações forçou secretarias de Saúde a comprar o medicamento fora das condições centralizadas pelo Ministério da Saúde. Os valores praticados nessas compras judiciais eram substancialmente mais elevados do que o acordado pela empresa com o Ministério da Saúde, a ponto de o MPF ajuizar uma Ação Civil Pública. A decisão de primeira instância, embora reconhecesse que os valores praticados fossem realmente mais elevados, julgou improcedente a ação, argumentando que tais valores estavam dentro do teto da CMED não sendo, portanto, abusivos.
Se dentro da normalidade cotidiana essa regulação ineficaz já prejudica consumidores e aquisições públicas de medicamentos, numa situação de crise sanitária, como a que vivemos agora, consumidores e poder público ficam ainda mais vulneráveis a práticas abusivas – no último caso temos o agravante das dispensas licitatórias decorrentes da decretação de calamidade pública. Nunca é demais reforçar que medicamentos podem ter preços fixados em patamares elevados sem comprometimento da demanda, porque pessoas e governos, mesmo frente a preços extorsivos, farão esforços hercúleos para pagar.
Há, ainda, uma consequência da escolha política infeliz do Brasil, de investir pouco em ciência e tecnologia, tornando nossa dependência de insumos estratégicos para a saúde um entrave ao atendimento da nossa população porque nos deixa reféns de importações. No caso específico dos testes para detecção do novo coronavírus, cruciais para o mapeamento da evolução da doença, com a alta demanda no mundo todo e a prioridade dos países que os produzem voltada ao seu mercado interno, resta ao Brasil ir para a fila de espera da compra, em concorrência com compradores do porte dos EUA e França.
Frente ao diagnóstico de que nossa política de preços falhou até mesmo para conferir um parâmetro do que seja abusivo, no curto prazo, são autoridades como Ministério Público, Procons e o CADE que farão a diferença na fiscalização de aumentos. É isso o que protegerá consumidores do encarecimento oportunista. Contudo, tais fiscalizações não podem levar em consideração o teto da CMED para delimitar abusividade, considerando que esse teto está totalmente descolado da realidade dos preços praticados hoje no país, cenário detectado pelo Tribunal de Contas da União. Outros elementos terão de ser considerados para avaliar a abusividade dos preços: o seu comportamento em relação à inflação geral e à inflação de saúde, a análise de disponibilidade e preços dos insumos na cadeia e, claro, a observância das margens de lucro das empresas.
No médio prazo ainda nos resta aperfeiçoar o teto da CMED, transformando-o em um instrumento efetivo de regulação dos preços, além de, urgentemente, promover transparência sobre as políticas de desconto tanto nas compras públicas quanto aos consumidores.
Recentemente, países como Canadá e Alemanha reviram suas políticas de regulação para conter a alta de preços de medicamentos, de maneira bem sucedida, em cujo exemplo o Brasil pode se inspirar. O sucesso desses países em aprimorar sua regulação contrasta com o aumento cada vez maior de preços de medicamentos em países com regulação fraca ou mesmo sem regulação, como é o caso dos EUA.
Nesse sentido, a solução começa com a exclusão dos EUA da lista de países de referência que a CMED utiliza para definir o preço de entrada de medicamentos no mercado brasileiro. Faz-se necessário também incluir critérios de custo-efetividade na avaliação dos preços, como fez a Alemanha em 2011. Outra medida importante é permitir a reavaliação do preço de entrada do medicamento, hoje restrito apenas aos medicamentos inovadores com ganho terapêutico comercializados em menos de três países da cesta.
E, claro, permitir reajustes negativos pela CMED, como recomendado pelo TCU. O reajuste do teto sempre positivo é particularmente danoso para medicamentos com a proteção de patentes, cujo preço de mercado já é muito alto por causa dos alegados – mas nunca devidamente justificados – custos com pesquisa e desenvolvimento. No caso específico dos medicamentos com versão genérica, a distorção é maior, porque seu teto é mais alto, o que produz na ponta uma situação peculiar, detectada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), de preços de genéricos serem mais elevados no varejo do que os dos seus concorrentes originais, neutralizando a lei dos genéricos.
A discussão toda aponta para a falta de transparência no setor farmacêutico, que no médio prazo precisa ser combatida. Uma regulação eficaz, com tetos de medicamentos realmente condizentes com a realidade é mandatória, mas a resposta também passa pela compreensão dos gastos com pesquisa, desenvolvimento, produção e logística na cadeia farmacêutica, inclusive considerando o quanto de dinheiro público esteve envolvido nos estudos que o criaram.
(*) Ana Carolina Navarrete é advogada e coordenadora do programa de Saúde do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).Matheus Falcão, advogado do Idec e especialista em Saúde.