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SAC não pode se tornar privilégio

Diogo Moyses E Fábio Pasin | 12/10/2021 14:34

O Conselho Diretor da Anatel está prestes a analisar as contribuições recebidas da sociedade sobre a revisão do principal regulamento que determina as regras das relações de consumo nos serviços de telefonia fixa e móvel, acesso à internet e televisão por assinatura. Tais regras estão dispostas no Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações (RGC) e têm enorme impacto no cotidiano dos consumidores brasileiros, sendo o principal instrumento de prevenção de práticas abusivas realizadas por operadoras deste ramo.

São inúmeras as mudanças propostas em relação ao regulamento atual. Uma delas, contudo, merece destaque pelo grande potencial lesivo aos consumidores, especialmente aos mais vulneráveis. Trata-se da autorização para que as operadoras criem ofertas de serviços com "atendimento exclusivamente digital", ou seja, que ofereçam somente atendimento digitalizado – por aplicativo próprio, site na internet ou aplicativos de mensagens –, sem atendimento presencial ou por telefone. O que está em jogo são direitos e garantias básicas e, de forma mais objetiva, o futuro do SAC – Serviço de Atendimento ao Cliente, hoje obrigatório para serviços regulados como os de telecomunicações.

De fato, o atendimento digital é uma tendência em expansão que deve ser permitida e incentivada como alternativa complementar aos "meios tradicionais" de atendimento. Esse processo inexorável já está em curso sem qualquer barreira legal e tem levado, inclusive, à redução substancial dos custos de operação das empresas, como mostram diversas reportagens publicadas pela imprensa especializada, inclusive aqui na TELETIME. Para alguns casos e segmentos de consumidores específicos, é certamente um mecanismo de interação entre usuário e empresa cada vez mais relevante, especialmente para alguns tipos de demandas.

O problema surge quando se permite que as empresas ofereçam preços de ofertas diferenciados a depender dos recursos de atendimento para os consumidores. A tendência é, por óbvio, que planos com atendimento presencial e telefônico sejam mais caros do que os planos com atendimento exclusivamente automatizado-digital. Se não houvesse diferenciação de preço, o que faria um consumidor optar por um plano com atendimento limitado?

Além de uma violação à legislação vigente – tema que voltaremos mais adiante – é possível vislumbrar que serão graves os prejuízos aos consumidores mais vulneráveis, que dependem, por inúmeras razões, das formas de atendimento não digital, especialmente por telefone. Grupos sociais como idosos e consumidores que possuem barreiras de conhecimento técnico e acesso à internet – milhões e milhões de brasileiros que dominam em melhor grau (ou somente) a linguagem oral –, ficarão sujeitos à maior vulnerabilização de seus direitos. A estes consumidores, serão apresentadas duas possibilidades: pagar por planos mais caros para obter atendimento (incluindo o elementar SAC) ou optar por planos mais baratos e ter violados seus direitos básicos, uma vez que não conseguirão atendimento digno e satisfatório pelos meios digitais. A milhões de brasileiros idosos e analfabetos funcionais, por exemplo, será imposta uma escolha que é, no limite, antiética: pagar mais caro ou ter seu direito básico de atendimento negado.

Mas o prejuízo será de todos, não somente de consumidores vulneráveis. Se a digitalização pode trazer benefícios, como agilidade e comodidade, em casos mais sensíveis, como as cobranças indevidas (que seguem em níveis altíssimos), ainda possuem baixo grau de resolutividade se comparado aos atendimentos tradicionais. Nesses casos, a dinâmica digital, muitas vezes intermediada por um robô automatizado, é incapaz de solucionar o problema. Ou seja, pelo menos por enquanto – considerado o estágio de desenvolvimento da inteligência artificial – há limites evidentes para a eficiência do atendimento digital, inclusive para consumidores sem barreiras de uso ou acesso à internet.

Em recente Panorama de Reclamações de 2020 publicado pela Anatel, o maior aumento percentual entre os assuntos mais demandados foi justamente o atendimento, com crescimento de 53,3% no número de reclamações em comparação ao ano anterior. O número revela que o exercício básico desse direito tem sido violado de forma sistemática, mesmo com os enunciados ganhos de eficiência do atendimento digital – que no mesmo período também cresceu exponencialmente. Se o atendimento digital fosse de fato universalmente eficiente, teríamos assistido a uma queda no número de reclamações sobre atendimento, mas o que ocorreu foi justamente o contrário.

A própria Anatel, em documento sobre a recente consulta sobre o Decreto do SAC, reconheceu a dificuldade de acesso do atendimento digital pelo público com idade avançada, sendo comprovada a necessidade de atendimento humano para atender suas demandas. Conforme pesquisa da Anatel (SEI nº 2284564) realizada em 2017 com consumidores que reclamaram na agência, 39% dos usuários da central telefônica tinham acima de 51 anos, enquanto nos canais digitais essa faixa etária respondia por 26% do público.

Outra importante conclusão já manifestada pelo órgão está relacionada à ineficiência do atendimento digital para a tratativa de problemas de consumo com maior complexidade. Nesse tema, a Anatel também reconhece que quanto maior a complexidade da demanda a ser solucionada, maior a chance de ser necessário atendimento humano, visto que "problemas mais desafiadores e complexos seriam melhor compreendidos por um atendente humano". Ou seja, há uma evidente contradição entre as informações e análises apresentadas pela agência e a proposta para a revisão do RGC.

A proposta também é inviável se analisada sob a perspectiva legal, por conflitar diretamente com as normas aplicáveis ao tema, notadamente, a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e o Decreto do SAC (DEC Nº 6.523/08). A Constituição Federal veda a criação de distinções ou preferências entre brasileiros (art. 19, III). Já o CDC proíbe a diferenciação de opções de escolha sobre produtos e serviços, devendo ser assegurada a igualdade nas contratações dos consumidores (art. 6°, II e IV, CDC). Além disso, ao condicionar a qualidade da informação e da assistência ao preço do serviço, viola-se gravemente o direito básico do consumidor de receber informações claras e adequadas (art. 6°, III, CDC).

Por fim, a proposta em curso contraria a essência do Decreto do SAC (Decreto 6.523/2008) – uma das maiores conquistas do consumidor –, que determina a obrigatoriedade de atendimento por telefone para serviços regulados pelo Poder Público. A menção tardia ao Decreto do SAC não é gratuita: em seu cerne, a norma, que regulamenta o Código de Defesa do Consumidor, materializa justamente o direito ao atendimento digno que é a base para relações de consumo éticas, justas e sustentáveis. É esta espinha dorsal que o RGC não pode quebrar. Portanto, caso a proposta seja aprovada, estaremos indo na contramão destas garantias básicas e a proposta deverá ser questionada no Judiciário, criando grande insegurança jurídica.

Ou seja, embora o atendimento digital possa ser positivo para alguns casos, há muito a avançar em nosso estágio de desenvolvimento antes da criação de planos sem atendimento humano direto, especialmente por telefone. Uma mudança gradual e cautelosa – e que ao mesmo tempo permita a inovação, já em pleno curso sem qualquer óbice legal – não é a que diferencia consumidores e suprime direitos básicos, mas a que estimula o atendimento digital eficiente sem deixar os cidadãos mais vulneráveis para trás.

*Diogo Moyses é coordenador do programa de telecomunicações do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Fábio Pasin é advogado e pesquisador do Idec.

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