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Saúde global: Comissão Lancet aponta urgência em descolonizar mentalidades

Deisy Ventura / Jornal da USP (*) | 23/05/2023 08:30

Por ocasião da 76ª Assembleia da Organização Mundial da Saúde, em Genebra (Suíça), foi lançado nesta segunda, 22, o relatório da Comissão Lancet sobre sinergias entre cobertura universal de saúde, segurança sanitária e promoção da saúde. Como membro desta Comissão, tive a honra de coordenar um dos onze estudos de caso que fundamentaram o seu trabalho, além de integrar o grupo de redação do relatório final.

Esta Comissão foi criada em 2018 pela revista The Lancet para diagnosticar os fatores que provocam a dispersão (e não raro o desperdício) de recursos investidos em cooperação internacional no campo da saúde. Sendo um dos mais influentes periódicos internacionais da área, a Lancet conseguiu reunir 32 dos maiores especialistas nesta temática, atuantes como pesquisadores e/ou gestores em países como África do Sul, Alemanha, Bangladesh, Bélgica, Brasil, Burkina Faso, Chile, China, Estados Unidos, Etiópia, Índia, Japão, Noruega, Quênia, Reino Unido, Suíça, Tailândia, Uganda e Zimbabwe. Liderada principalmente por Irene Agyepong (Faculdade de Saúde Pública de Gana) e David Heymann (London School of Hygiene & Tropical Medicine), a Comissão contou, ainda, com o apoio de dezenas de assessores e pesquisadores de diferentes universidades, inclusive da USP.

A avaliação de três agendas, atualmente desconexas, estruturou o trabalho da Comissão: a cobertura universal da saúde, compreendida como o acesso a todos os serviços de saúde dos quais se necessita, onde e quando eles são necessários, sem obstáculos econômicos; a segurança sanitária, que corresponde ao conjunto de atividades necessárias para minimizar o perigo e os efeitos de graves eventos que põem em risco a saúde das pessoas; e a promoção da saúde, abarcando as políticas públicas e as iniciativas educacionais que ajudam as pessoas a aumentar o controle sobre sua própria saúde e favorecem uma vida saudável.

Dezenas de bilhões de dólares são investidos a cada ano nestas agendas, sem que seus marcos conceituais e prioridades práticas dialoguem entre si. Assim, o principal propósito deste relatório é apresentar propostas que racionalizem a utilização de recursos humanos e financeiros, e que estabeleçam sinergias entre valores que não devem ser rivais. Por exemplo, não é admissível que se fale sobre segurança sem levar em conta o acesso universal e a promoção de saúde, sob pena de corroborarmos o fortalecimento de um grande esquema internacional de vigilância, em detrimento da cooperação para fortalecimento dos sistemas de saúde e para melhora efetiva da saúde das populações.

Apoiada por agências de cooperação alemãs, canadenses e norueguesas, além da Wellcome Trust e de outros financiadores, esta Comissão Lancet vivenciou em seu próprio trabalho as tensões entre as mentalidades e as práticas que se propôs a estudar. Como na maior parte dos foros dedicados à saúde global, o colonialismo ainda é muito vivo e se expressa de forma velada ou explícita, abarcando desde a persistente clivagem Norte/Sul na definição de conceitos e prioridades de ação, até o predomínio cafona e excludente, porém ainda quase absoluto, da língua inglesa no debate internacional.

Em oposição ao chamado “ventriloquismo do Norte” que acomete tantos pesquisadores do Sul Global, foi extraordinário ter o apoio de Irene Agyepong e David Heymann para a formação pontual de subgrupos paralelos que podiam trabalhar em idiomas diversos. No entanto, ainda falta muito para que investimentos em tradução e interpretação oportunizem a plena expressão, em todo o seu potencial, dos pesquisadores de países não anglófonos.

Pelo tema abordado e pelas restrições que ocasionou, evidentemente a covid-19 marcou os trabalhos da Comissão. Após duas instigantes reuniões presenciais, realizadas em Londres (2018) e Heidelberg (2019), a pandemia não apenas nos obrigou ao trabalho remoto, mas também modificou os termos do debate. Deixamos de ser os incômodos especialistas que previam, há muitos anos e em detalhes, a próxima emergência sanitária, para assumirmos, em nossos respectivos países e nos âmbitos internacionais, o papel de testemunhas e/ou atores de uma catástrofe que confirmava, em tempo real, os nossos piores diagnósticos. A resposta internacional à covid-19 foi, de fato, uma cabal amostra de dispersão e irracionalidade na gestão de diferentes agendas da saúde global, gerando, entre outras disfunções, um verdadeiro apartheid no acesso a vacinas e outros insumos.

Diante de um trabalho rico, mas polêmico e complexo, poderíamos resumir as conclusões desta Comissão destacando o quanto a falta de coordenação e a fragmentação de iniciativas, muitas vezes sobrepostas e mal direcionadas, comprometem a eficácia dos programas de saúde global. A mentalidade colonial está na origem da centralização dos processos decisórios e da falta de senso crítico sobre os programas em curso, hoje perigosamente coadunados com poderosos interesses privados, assim como da incapacidade de ouvir os verdadeiros destinatários da cooperação, bloqueando sinergias que poderiam ser valiosas na concepção e na implementação destas agendas.

Um exemplo positivo do papel que a busca de sinergias entre as três agendas pode desempenhar provém de uma das vertentes do estudo de caso realizado pela USP a pedido da Comissão. Em artigo anteriormente publicado na excelente revista Global Public Health, nossa equipe estudou a campanha “Mais Direitos, Menos Zika”, implementada no Brasil em 2016, quando a Síndrome Congênita do Vírus Zika (SCVZ) era considerada uma emergência internacional de saúde pública.

A pesquisa revelou como o Fundo das Nações Unidas para a População adaptou e potencializou seus investimentos na resposta ao Zika quando decidiu estabelecer um diálogo direto com os governos locais e com as entidades sociais, passando a priorizar a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres em sua atuação e, portanto, indo além da tradicional política de controle do vetor da doença que predominava no âmbito nacional. O slogan “não é só culpa do mosquito”, utilizado na campanha, é uma amostra do quanto uma campanha de prevenção, em princípio vocacionada à segurança, pode abarcar elementos cruciais da defesa do acesso universal e da promoção da saúde.

Entre as diversas recomendações da Comissão, destacamos a promoção de mecanismos mundiais, nacionais e subnacionais de coordenação das iniciativas de saúde global; a busca da descolonização da saúde global, evitando a tomada centralizada de decisões que reproduz assimetrias de poder entre os Estados, e também dentro de cada país; e a revisão das estratégias das organizações internacionais que também carecem de sinergia e causam a fragmentação do campo.

Não posso deixar de agradecer à equipe brasileira a dedicação essencial para que a USP marcasse sua presença nesta Comissão de alto nível. Meu reconhecimento ao valioso trabalho de Danielle Hanna Rached, professora do Instituto de Relações Internacionais; Jameson Vinicius Martins e Paulo Roberto Trivellato, doutorandos do Programa de Pós-graduação em Saúde Global e Sustentabilidade da Faculdade de Saúde Pública; Cristiane Ribeiro Pereira, mestranda do Instituto de Relações Internacionais; e Lúcia Dias da Silva Guerra, à época pós-doutoranda da Faculdade de Saúde Pública.

No momento em que se negocia uma nova versão do Regulamento Sanitário Internacional, e até mesmo um tratado internacional sobre pandemias (ambos acompanhados por um Grupo de Trabalho resultante de parceria entre a USP e a Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz), as recomendações desta Comissão adquirem ainda maior relevância para que a vida e a saúde das populações seja, de fato, o objetivo primordial da cooperação internacional.

(*) Deisy Ventura, vice-diretora do Instituto de Relações Internacionais da USP.

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