Um dia na vida de uma pessoa com depressão de alto funcionamento
Para muitos, a depressão se traduz em falta de energia, choro constante e incapacidade de realizar tarefas cotidianas. No entanto, existe um tipo silencioso e devastador: a depressão de alto funcionamento. As pessoas que vivem com esse transtorno conseguem manter as aparências, cumprir obrigações e seguir a rotina, mas por dentro estão emocional e psiquicamente esgotadas.
Vamos acompanhar um dia na vida de alguém que convive com essa realidade.
6h30 - O despertar da batalha silenciosa
O alarme toca, e a primeira batalha do dia começa: sair da cama. A vontade é permanecer ali, protegida pelo cobertor, longe do mundo. Mas ela respira fundo e levanta. A mente já está pesada, preenchida por pensamentos como “é só mais um dia” e “eu só preciso aguentar”.
Ela segue para o banheiro e encara o espelho. O rosto parece cansado, mesmo após horas de sono. No automático, escova os dentes e lava o rosto, tentando espantar o cansaço que não é físico, mas emocional.
7h30 - A rotina profissional mascarada
No trabalho, ela é eficiente e produtiva. Os colegas comentam como ela parece organizada e competente. Ninguém imagina que, por trás da postura impecável, existe um esforço quase insuportável para manter a concentração e evitar o colapso.
Cada e-mail enviado e cada tarefa concluída exigem um controle imenso para não deixar escapar o caos interno. As interações são calculadas: sorrisos automáticos, respostas prontas e aquele comportamento padrão que ninguém questiona.
A sensação de vazio é constante, e ela se pergunta repetidamente: “Por que estou fazendo isso?” Mas a resposta nunca vem.
12h00 - Almoço sem apetite
Na hora do almoço, a comida é apenas uma obrigação. O apetite é inexistente, mas ela se força a comer para evitar perguntas. Quando alguém pergunta se está tudo bem, ela responde com um sorriso ensaiado: “Tudo certo, só um pouco cansada.”
Entre uma garfada e outra, a mente vaga. Por vezes, ela sente vontade de simplesmente sair correndo, escapar de tudo. Mas rapidamente volta ao modo automático, como se seu cérebro tivesse aprendido a desligar a dor para continuar funcionando.
15h00 - A fadiga emocional se intensifica
A tarde parece interminável. Cada pequena tarefa se transforma em um desafio gigantesco. A exaustão mental é tão intensa que é difícil lembrar detalhes simples. No entanto, ela mantém o ritmo, cumprindo cada demanda como uma máquina que executa comandos, sem refletir ou sentir.
De vez em quando, uma sensação de pânico ameaça tomar conta. O coração acelera e o peito aperta, mas ela respira fundo e reprime a crise, lembrando a si mesma que ninguém pode notar.
18h00 - O retorno solitário para casa
Ao sair do trabalho, a sensação de alívio é instantânea, mas dura pouco. No caminho para casa, os pensamentos se acumulam, e a máscara começa a rachar. Quando finalmente cruza a porta, ela sente o peso de toda a atuação do dia cair sobre seus ombros.
Joga a bolsa no sofá e simplesmente desaba, às vezes chorando, às vezes apenas encarando o vazio. A casa está silenciosa, mas sua mente é um turbilhão de angústia e frustração.
20h00 - Tarefas domésticas no piloto automático
Mesmo emocionalmente devastada, ainda há obrigações a cumprir: preparar o jantar, arrumar a casa, talvez responder algumas mensagens. Cada tarefa parece um peso imenso, mas ela cumpre tudo mecanicamente, sem entusiasmo nem vontade.
No fundo, pensa em como seria bom simplesmente desaparecer, mas a ideia de deixar tudo para trás traz uma culpa imediata. Afinal, ela tem que continuar. Não pode decepcionar ninguém.
22h30 - O cansaço que não passa
Deitada na cama, ela revisita mentalmente cada momento do dia. Sente-se uma fraude por manter as aparências enquanto tudo está em ruínas por dentro. A insônia frequentemente a acompanha, alimentada por pensamentos circulares sobre o que poderia fazer diferente, sobre como deveria estar se sentindo melhor.
Por fim, adormece com a esperança vaga de que o próximo dia seja menos pesado. Mas, no fundo, já sabe que o ciclo vai se repetir.
Reflexões finais: o grito silencioso da depressão de alto funcionamento
A depressão de alto funcionamento é cruel porque engana o mundo e, muitas vezes, a própria pessoa que a vive. A capacidade de manter a rotina faz com que os outros não percebam a gravidade do sofrimento. Isso contribui para o isolamento emocional, já que pedir ajuda parece injustificável para alguém que “aparentemente está bem”. Precisamos compreender que ninguém deve carregar sozinho o peso de uma dor invisível. Reconhecer que mesmo pessoas que “dão conta de tudo” podem estar à beira do colapso é o primeiro passo para oferecer apoio genuíno. Se você se identifica com essa realidade, saiba que não está sozinho. Buscar ajuda não é sinal de fraqueza — é um ato de coragem e cuidado consigo mesmo.
A vida não precisa ser um cumprimento automático de tarefas. Há um caminho para recuperar a vontade de viver e sentir.
(*) Cristiane Lang é psicóloga clínica.
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