De repente, cinquenta e oito anos
Dezesseis de fevereiro. Comecei a escrever essa crônica no dia do meu aniversário...
E lá se foram alguns anos desde a manhã chuvosa na qual os meus olhos se abriram pela primeira vez. Minha mãe conta sobre o desespero: ela era uma moça pequena, magrinha, bastante frágil. Quase morreu durante o parto. Eu era uma criança enorme e ela uma moça assustada de dezessete anos. Só sei que era carnaval e chovia bastante, enlameando de vez a Avenida Contorno, atual Salgado Filho, quatro quadras acima do portão de ferro. Passo em frente da casa onde nasci todos os dias, é caminho para o trabalho.
Ninguém precisa acreditar, mas o cheiro daquele dia ainda existe em mim, como se fizesse parte da minha essência.
Foi um momento difícil. Deus, aquele de Espinoza, enviou forças aos braços da moça abandonada por quase todos. Sobrevivemos, como só sobrevivem os fortes. Não gosto muito de falar disso, prefiro beijar o rosto da minha mãe e agradecer a vida que ela me deu. Viva a vida, Vidalvina.
Quintana surge no meu pensamento: “O passado não conhece o seu lugar, ele teima em aparecer no presente”. E eu tento completar, fazendo as vezes do poeta que não me sinto, mas talvez exista em mim: o passado e o presente são dois poços de águas engolidas pelo sol. Chove sempre, o poço enche novamente e nunca resseca.
Um dia junto toda essa história em um livro que pretendo escrever, de memórias, mas isso somente quando perceber bem perto o fim da vida. Agora “sou muito moço pra tantas tristezas”, um afortunado rodeado de amigos. Eu canto quando penso, assovio enquanto escrevo. Se escrevo é porque vivi e o assovio é o som da felicidade. No entanto, preciso escrever que nos dezesseis de fevereiro é quando sinto um aperto no peito saudoso dos ventos de antes.
Gosto da data, embora ela me faça enxergar a rapidez do trem da vida. O tempo é uma cilada, somos perecíveis como as flores. O banho quente no final do dia descortina antigos dezesseis de fevereiro. Os jatos de água passeiam pela minha cabeça, o chuveiro parece falar, como se fosse aquele amigo antigo, de memória tão boa, na qual passeiam as façanhas de antes: “Lembra daquele seu aniversário de vinte anos?” Sim, claro, os amigos inundaram a varanda de casa, as imagens estão vivas na mente, ainda ouço os gritos e os abraços afetuosos. Sinto falta deles, embora não me recorde o nome de todos. De novo um aperto no peito: muitos amigos se perderam de mim na estrada da vida. Tem uma música do Dominguinhos que diz: “amigos a gente encontra, o mundo não é só aqui, repare naquela estrada, que distância nos levará?”. Pois é isso mesmo. O presente é diferente do antes, mas é tão bom quanto. Talvez seja melhor, os amigos atuais são como aquela árvore que sempre esteve enraizada ao nosso redor, mas só nos damos conta disso quando a água morna do chuveiro desce pela cabeça ao completar mais um ano de vida.
O vento novo, entretanto, é mais puro e suave. Olho em volta do tempo ido, sou um sobrevivente, um náufrago que encontrou terra, um pássaro bicando os galhos da árvore inesperada.
No sábado, dia dezoito, meus amigos vieram me abraçar, juntos bebemos e cantamos as músicas que amamos, de tempos idos mas sempre presentes, uma noite feliz, banhado a chope porque eu, o Lairson e o Athayde não soubemos desligar o barril quando o vento apertou no terraço, trazendo um frio inesperado em fevereiro. O jeito foi descer todo mundo para a varanda. O chope não quis descer, explodiu, se esparramou nas nossas camisas e o resultado foi o riso. Cervejas substituíram o teimoso chope. E foi tudo bom demais.
Geraldo, Moacir, Luiz, Eduardo, Lenildes...A voz de vocês haverá de ecoar no meu coração para sempre. Nem sei como agradecer a noite inesquecível. Com um medo enorme de esquecer alguém, beijo o rosto de cada companheira e companheiro que se fizeram presentes aqui em casa nesse já inesquecível aniversário. Eu e a Graziela somos eternamente gratos: Lucilene, Samuel, Cláudia, Sylvia, Dalila, Daise, Carmem, Tânia, Catarina...
Quem não veio dessa vez, por um motivo ou outro, fique sabendo que virão muitos outros dezesseis de fevereiro...
Eu aqui, enxaguando a água morna do corpo, termino num pensamento, o tempo como se fosse um bicho estranho, que a gente imagina ter os passos calmos e vagarosos, mas na realidade corre ligeiro, tem asas, e às vezes derrama uma porção de sentimentos...
Novamente sinto aquele aperto no peito, agradeço a vida e choro lágrimas tão quentes, porque são feitas de felicidade, e meu coração transborda sem saber ao certo o que dizer. Então termino com um singelo muito obrigado a todos e nas palavras de Cora Coralina: “a vida é boa, saber viver é a grande sabedoria.
André Alvez