Alvo de 3 operações, "cadeia criminosa do 4º eixo" é fraude “gritante” no Detran
Manobra documental legalizava a situação, antes mesmo de ser autorizada no Brasil
Deflagradas desde novembro pela Polícia Civil, três operações mostram que o Detran-MS (Departamento Estadual de Trânsito) se tornou propício para uma fraude absurda: regularização do quarto eixo em carretas quando a medida ainda era proibida. O aumento de mais um eixo, que permite levar até mais 1,5 tonelada de carga, só teve autorização em 2022 pelo Governo Federal.
A fraude documental “esquentava” a documentação de veículos que nem precisavam vir a MS e, por tabela, não passavam por vistoria. O esquema consistia numa cadeia criminosa que reunia servidor cooptado no Detran, despachante, endereços fictícios e agiota, esse último para girar a engrenagem que dissimulava a origem do dinheiro.
Batizada de “Resfriamento”, a primeira operação foi deflagrada no mês de novembro em Juti, a 320 km de Campo Grande. A ação, na cidade com 6.729 habitantes, foi liderada pelo Dracco (Departamento de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado).
Existe, já de início, uma situação gritante, que são veículos com registro de quarto eixo num período de proibição. A medida que poderia ter evitado isso? A vistoria de segurança. Mas não contava com ela. É uma cadeia criminosa que vai se montando”, afirma a delegada Ana Cláudia Medina, diretora do Dracco.
Na operação de Juti, dentro do pacote de fraude, houve documentação do quarto eixo em caminhões do Paraná e Santa Catarina. O esquema, aparentemente, inventava endereços em Mato Grosso do Sul. Tinha documento que a numeração levava a terreno baldio. Nas cidades maiores, era escolhida alguma avenida famosa, mas a residência era sem número.
“Aqui, eles conseguiam efetivar a fraude. Como eles conseguiam fazer essa manobra? Utilizando-se de despachantes que direcionavam para as unidades do Detran com servidores que aceitavam vantagem indevida para efetivar esse tipo de fraude. Na operação Resfriamento, que foi a primeira e abriu portas para as outras, nós trabalhamos com corrupção. Identificamos quer era uma organização criminosa que se estruturou para esse tipo de fraude. Não só constatamos a fraude, mas também seguimos o dinheiro do enriquecimento ilícito”, diz Ana Cláudia Medina.
O rastro do dinheiro levou a investigação a servidores do Detran com patrimônio incompatível com a renda e a atuação de agiotas, mecanismo que utilizava laranjas para pulverizar a propina. De acordo com a delegada, ainda está em apuração o valor pago a cada envolvido no esquema para concretizar a fraude.
O Detran de Juti se esquivava de fornecer documentação para a Corregedoria do órgão. A informação era de que documentos tinham sumido por conta de eventos da natureza, como chuva dentro da agência. Contudo, a documentação foi apreendida na casa de funcionário.
Resfriamento – Realizada em novembro do ano passado, a operação do Dracco teve os seguintes alvos: Adriano Passarelli (gerente da Agência do Detran e ex-vereador), Marcel Libert Lopes Cançado (servidor do órgão de trânsito), João Ney Pereira da Silva (despachante de Dourados), Jefferson Cassavara (empresário) e Jeferson Cassavara Junior (empresário).
Dividida em três núcleos, a organização criminosa movimentou pelo menos R$ 17 milhões. A operação apreendeu R$ 153,2 mil em espécie e R$ 307.795,00 em cheques. Ao obter a liberdade dos alvos, as defesas apontaram que os fatos investigados ocorreram há dois anos, que eles não oferecem risco à ordem pública, além de bons antecedentes.
Gravame – Em 14 de junho deste ano, a operação Gravame investigou crimes de corrupção ativa e passiva, falsidade ideológica e inserção de dados falsos em sistemas de informação do Detran-MS. O esquema também incluía o quarto eixo antes de ser permitido. A ação foi realizada em Bela Vista, a 322 km de Campo Grande.
Os alvos foram a servidora Elena Rodrigues Alarcon e quatro despachantes. De acordo com a Polícia Civil, a investigada movimentou mais de R$ 200 mil e recebeu R$ 30 mil em propina.
“A própria investigada apontou que recebia valores, a título de ‘propina’, dos despachantes, para confeccionar processos de transferência de veículo de maneira irregular, sem sequer estar na presença física dos veículos, eis que todos eles estariam em Campo Grande-MS, e, portanto, não eram submetidos à inspeção presencial”, informa documento da investigação.
Ao ser ouvida na Corregedoria do Detran, a partir das 9h30 de 29 de agosto de 2022, a servidora relatou que documentos ficaram ilegíveis por causa da impressora, que campos de documentos não foram preenchidos por esquecimento ou pressa para concluir o serviço. Ela também declarou que todos os veículos foram até à Agência do Detran de Bela Vista.
Horas depois, no mesmo dia 29 de agosto, a servidora assinou um termo de declaração complementar informando que os veículos sob suspeita nunca estiveram na agência de trânsito para vistoria. Ela recebia documentos de despachantes pelo WhatsApp para vistorias e transferências dos veículos, que estavam em Campo Grande. O pagamento era de R$ 250 por ação irregular.
A operação apreendeu um caderno com a contabilidade, mostrando placas de veículos e valores pagos. “A defesa manifesta-se no sentido de que não é verdade e de que os fatos não ocorreram conforme a apuração da delegacia. Bem como, as movimentações financeiras serão comprovadas no decorrer do processo”, afirma o advogado Welerson Cezar de Oliveira, que atua na defesa de Elena. Ele nega que a cliente tenha confirmado o recebimento de propina. A servidora foi afastada do Detran.
Miríade - A Operação Miríade foi deflagrada pela polícia em 29 de junho contra funcionários públicos responsáveis pela inserção de dados falsos no sistema do Detran.
As fraudes aconteciam desde 2021, em especial aquelas relacionadas à inclusão fraudulenta do chamado 4º eixo nas especificações do veículo.
Por meio do monitoramento dos investigados, foram obtidas conversas telefônicas em que o esquema criminoso era amplamente discutido, inclusive com pretensões de remoções ilegais de outros servidores e delegados que presidiam as investigações.
Detran - O órgão de trânsito informou que no decorrer do processo de detecção das fraudes pela Corregedoria, em parceria com as diretorias do Detran-MS, diversas modificações vêm sendo adotadas para impedir essas ações. Ao todo, três servidores já foram afastados por ordem judicial, além da abertura de procedimentos administrativos.
Quanto aos prejuízos, a resposta é de que valores serão apontados somente ao término das investigações.
"Tanto nas três operações, quanto na operação realizada em Nova Alvorada do Sul no ano passado, teve participação efetiva da Corregedoria. Vale ressaltar que essas fraudes vêm sendo detectadas pela Corregedoria e pelo Detran, que em conjunto com a Polícia Civil realiza as operações nos municípios".
Sobre as operações, o órgão de trânsito já havia se manifestado por meio de nota à imprensa. "Assim que surgiram os primeiros indícios de irregularidade, constatada a prática criminosa, todo o material coletado foi encaminhado à polícia, que abriu inquérito policial".
A direção reafirmou que não compactua com nenhum tipo de irregularidade praticada por servidores do órgão ou agente externo e que os envolvidos devem ser punidos com o rigor da lei.
Matéria alterada no dia 11 de julho para acréscimo de informações do Detran-MS.