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Cidades

As 12h de plantão de UTI Covid: lotação, cansaço e morte na rotina de enfermeira

Enfermeira de 43 anos relatou dia de plantão de 12h dentro de UTI Covid em hospital da Capital

Silvia Frias | 16/03/2021 14:23
Paciente internado em UTI Covid, em Campo Grande (Foto/Arquivo: Saul Schramm)
Paciente internado em UTI Covid, em Campo Grande (Foto/Arquivo: Saul Schramm)

*Polly, 43, é enfermeira há 21 anos, 18 deles dentro de UTIs (Unidade de Terapia Intensiva). Está acostumada a rotina que envolve perdas, mas, também alegrias ao presenciar a recuperação de paciente. Desde o início da pandemia da covid-19, o cenário mudou drasticamente.

“É a pior fase, ver paciente não tendo evolução boa, pessoas jovens sendo internadas, é muito triste. A gente se entrega para ver eles melhorarem, isso cansa fisicamente e mentalmente”, conta.

A enfermeira diz que o vínculo continua mesmo quando o paciente é transferido de hospital. “A gente fica querendo saber se está melhor e fica arrasado quando morre”.

Esta semana, Polly aceitou gravar áudios sobre a rotina do plantão de 12h, dentro de UTI Covid-19, em hospital de Campo Grande onde trabalha há 3 anos. A identidade dela e da instituição não serão divulgadas para preservar a profissional.

Individualizar não seria necessário: o desafio diário dela é o mesmo de vários outros trabalhadores da saúde que estão dentro das UTIs para pacientes covid-19 no País.

O relato abaixo é técnico, preciso, mas não desprovido de sentimento. Nos áudios enviados à reportagem, ela deixa transparecer o cansaço na voz e evidencia a rotina pesada e cíclica, interrompida pelas “intercorrências”, quando há piora no quadro clínico de paciente, muitas vezes, terminando com a morte dele. Ao fundo, o barulho das máquinas que mantém as vítimas da covid ligadas à vida.

Na Santa Casa de Campo Grande, ala foi aberta em suporte ao HR (Foto/Divulgação)
Na Santa Casa de Campo Grande, ala foi aberta em suporte ao HR (Foto/Divulgação)

18h20 - Hoje me preparo para mais um plantão. No caminho, pedi, em oração, proteção a Deus para que faça as coisas corretamente e que ele me proteja para que não venha a me contaminar. Chego no hospital às 18h, trinta minutos antes do meu plantão. Inicialmente, tenho que pegar as roupas privativas, específicas para atendimento aos pacientes covid e pego meus EPIs. Bato o ponto. Agora estou começando a troca da minha roupa e me paramentando com meus EPIs conforme protocolo para receber o plantão e conhecer os novos pacientes.

18h40 – Recebo o plantão e, infelizmente, dois pacientes que estavam sendo cuidados por nós vieram a falecer. No entanto, já admitimos mais dois pacientes, ou seja, não tem nenhum leito vago. Pego plantão com quatro pacientes instáveis, com vários graus de instabilidade ventilatória e metabólica, que vão requerer atenção.

Nem bem recebo o plantão já vou fazer minha primeira intervenção em um dos pacientes que já está muito grave. Vou coletar gasometria (coleta de sangue via artéria), para ver como estão os padrões metabólicos e oxigenação do paciente que se encontra intubado e em ventilação mecânica.

18h42 – Realizo a punção arterial para análise no paciente que se encontra instável mecanicamente. Houve necessidade instantânea, imediata, para estabilização e mudança de parâmetros ventilatórios para proporcionar melhora no quadro hemodinâmico do paciente. Estou correndo para levar para a doutora para análise

Paciente colocado de costas (pronado) para melhorar oxigenação (Foto/Arquivo: Saul Schramm)
Paciente colocado de costas (pronado) para melhorar oxigenação (Foto/Arquivo: Saul Schramm)

19h – Tenho que passar em vistoria todos os pacientes para verificar as drogas e os sedativos que estão recebendo, fazer solicitação via farmácia para que eles não fiquem sem medicamentos durante o plantão.

19h10 – Já recebo mais solicitações de coleta de gasometria arterial, é exame invasivo que só enfermeiro pode fazer. Outra tarefa que passaram para mim é fazer cultura, ou seja, coleta de vários exames invasivos de um paciente que foi admitido no setor para verificação de nível de bactéria.

19h30 – Vou me paramentar, mais uma vez, para coletar culturas. São exames específicos e invasivos de um paciente covid, intubado, em ventilação mecânica, recebendo drogas vasoativas, sedativas. A cultura é para ver se tem infecção generalizada, algo nesse sentido.

20h25 - Bom, agora, nesse exato momento, terminei de fazer a coleta de culturas, para ver nível de infecção, se pode ter adquirido, como forma oportunista. Comecei às 19h32, terminei agora, ou seja, fiquei praticamente 1 hora em cima de um único paciente para fazer a coleta (hemocultura, coleta de sangue, gasometria arterial, punção de artéria, secreção do pulmão e urina).

Acabei de tirar a roupa e os EPIs. Vou novamente me paramentar para fazer coleta de outro paciente, que está pronado (deitado de bruços) e precisa de avaliação gasométrica, ou seja, oxigenação sanguínea pós-pronação.

20h37 – Terminei de coletar o exame. Tiro toda a paramentação, levo o material ao laboratório e, agora, vou fazer análise dessa gasometria. Coloco sangue no gasômetro e vou levar o resultado para a doutora. Aí, tenho que dar pausa para jantar. O horário de janta é das 20h30 às 21h30.

21h38 – Retorno da janta, me paramento de novo, vou ajudar as meninas na mudança de decúbito dos pacientes. Então, vamos manipular todos os pacientes e vou fazer exame físico deles para ver o que posso prescrever em cuidados para melhorar as condições. Aqui nós estamos com 10 pacientes internados, todos necessitando de hemodiálise, todos com solução sedativa, com drogas vasoativas, para melhorar frequência cardíaca e pressão arterial e todos usando sondas para alimentação. Então, vou fazer exame físico, mudar de decúbito com técnicos, fazer inspeção dos cuidados prestados e identificar os curativos dos acessos centrais. Depois, sentar para discutir com médicos e fisioterapeutas quais são as condutas que vão ser adotadas daqueles pacientes que fiz a coleta das gasometrias arteriais.

Monitoramento constante dos equipamentos é feito pela equipe intensivista (Foto/Arquivo: Saul Schramm)
Monitoramento constante dos equipamentos é feito pela equipe intensivista (Foto/Arquivo: Saul Schramm)

22h09 – Intercorrência: paciente desestabilizou, com queda de saturação, queda de pressão arterial, da frequência cardíaca, evoluindo à parada cardiorrespiratória. Inicia-se procedimento de reanimação cardiopulmonar, com presença de fisioterapeuta, técnico de enfermagem, enfermeiro e médico.

22h20 – Foram cinco ciclos de manobra de reanimação cardiopulmonar e paciente retornou, está estabilizado. Vamos instalar mais drogas vasoativas. Daqui 20 minutos devo retornar para coleta de gasometria arterial para ver se paciente está adequado no ventilador mecânico e como que está parte metabólica após a parada.

22h22 – Vou para outro paciente. Ele fez hemodiálise, então, uma hora depois do procedimento, tenho que fazer coleta de sangue e gasometria arterial. Vou me paramentar novamente para a coleta dele.

22h30 - Terminei de coletar exame. Vou até o aparelho para análise desse exame e mostrar à doutora qual conduta: se teve resposta ou houve mudança.

22h56 - Exame entregue. Que bom que a resposta foi boa, a hemodiálise surtiu efeito e ele melhorou da acidose metabólica (alteração nos índices pode atestar desequilíbrio no metabolismo). Agora vou preparar materiais para coleta dos exames de rotina dos pacientes na madrugada e depois de organizar material.

Enfermeira monitora paciente no Hospital Regional (Foto/Arquivo: Saul Schramm)
Enfermeira monitora paciente no Hospital Regional (Foto/Arquivo: Saul Schramm)

23h14 – Vou sentar para fazer as anotações sobre quatro pacientes que estão sob responsabilidade da equipe. O restante vou fazer as avaliações conforme protocolo da unidade (Polly lista vários exames que medem o percentual de risco dos pacientes).

Descanso de 1h30.

2h08 – Novamente, irei me paramentar, fazer mudança de todos os pacientes, mudança de decúbito, auxiliando técnicos de enfermagem, e ainda fazer a supervisão de todas as medicações. Depois, organizar para fazer a coleta de sangue de todos os pacientes internados. Tem que estar tudo prontinho às 7h para que médico que chegar faça avaliação do que aconteceu no plantão.

2h31 - Depois de me paramentar, cheguei no setor para ver os pacientes, intercorrência imediata: um paciente em queda de saturação súbita, temos que mudar a posição dele no leito, aumentamos o parâmetro de ventilador mecânico para suporte de oxigênio para 100%. Realizo a aspiração traqueo (para retirar acúmulo de secreção) e aguardando paciente dar melhora no padrão de oxigenação sanguínea.

Segundo paciente, outra intercorrência imediata: paciente apresentando sangramento oral, nasal por complicações prévias da covid. Fizemos aspiração via oral, nasal e melhoramos posicionamento do paciente no leito.

2h35 -Mais uma intercorrência: paciente traqueostomizado, em ventilação mecânica, com suporte 100% de oxigênio que ela já tá recebendo, mas apresentando queda de saturação, taxa de oxigenação sanguínea caindo, taquicardia, ou seja, coração acelerado. Vamos intervir, melhorando posicionamento e suporte ventilatório.

2h47 - Conseguimos solucionar. As intercorrências são muito instantâneas, enfermeiro tem que ficar a todo momento alerta aos monitores de ventilação mecânica e como pacientes respondem.

2h53 – Vou iniciar coleta de sangue de todos os pacientes. São 10 pacientes, gravíssimos, intubados, traqueostomizados, todos em ventilação mecânica, com suporte alto de oxigênio, um deles, pronado.

Além dos exames de rotina, terei que realizar punção arterial para análise de gasometria arterial para ver taxa de oxigenação sanguínea e verificar as condições metabólicas de todos os pacientes.

4h – Terminei de coletar os exames de todos os pacientes, difícil de punção. Agora vou até o gasômetro para rodar todas as gasometrias para ver como se comportaram na parte metabólica e taxa de oxigenação no sangue.

4h20 – Fiz a leitura de todos os sangues arteriais no gasômetro. Infelizmente, tem paciente que vai precisar de correção de glicemia, uns fazendo hipoglicemia, sendo necessário administrar glicose, outros vão ter que receber insulina porque estão com a glicemia alta. Todas as intervenções são feitas com registrado em prescrição médica.

4h45Intercorrência: paciente apresentando sangramento nasal e oral. Estamos realizando tamponamento nasal para ver se melhora, mas, tudo indica que seja complicação da covid. Este paciente fez hemodiálise no início do plantão, estamos em cima dele.

Não esquecendo que, por mais que fiz coleta de 10 gasometrias, voltei a fazer novas 2 coletas, ou seja, recoleta do paciente, já que no resultado, na interpretação, veio muito alterado. Estou fazendo novamente para confirmação do que o exame mostrou.

Além da UTI do Hospital Regional, Campo Grande ainda tem leitos na Santa Casa, HU e hospitais privados (Foto/Arquivo: Saul Schramm)
Além da UTI do Hospital Regional, Campo Grande ainda tem leitos na Santa Casa, HU e hospitais privados (Foto/Arquivo: Saul Schramm)

4h49 – Faço a verificação da nova coleta de dois pacientes, visto que a saturação na corrente sanguínea está muito baixa. Por mais que eles estejam em ventilação mecânica e estejam recebendo 100% de oxigênio, fiz a nova coleta para certificar que se é realmente isso no exame. Nova coleta, nova análise no gasômetro e, infelizmente, os dois estão com exame alterado, estado gravíssimo, comunico a médica de plantão.

4h56 – Agora vou fazer novamente supervisão de todos os pacientes, verificar cada um deles, as drogas usadas e os sinais vitais para preparar para fechamento de plantão.

5h17 – Vou começar as anotações das intercorrências.

5h29Intercorrência: paciente apresentando sangramento em grande quantidade por cateter de hemodiálise. Faço curativo compressivo e com adrenalina para conter sangramento.

5h40 – Paciente para. Iniciamos a reanimação cardiopulmonar.

5h53 – Muitas manobras realizadas, muitas intervenções feitas, mas infelizmente ele veio a óbito. Toda equipe exausta, cansada e chateada pela situação. Mas agora é realizar protocolo de óbito do paciente.

Esse paciente, de 56 anos, constou positivo para covid desde o dia 23 de fevereiro. Faz 20 dias que o paciente foi considerado com com covid devido os sinais e sintomas, mas classifica-se como covid tardio para que as famílias possam realizar o velório. (sem essa classificação, os familiares não teriam direito a fazer o velório por 2 horas).

6H03 – Entramos em contato com serviço social do hospital para que a doutora fale com os familiares e dê notícia. Enquanto isso, o corpo começa a ser preparado para serviço de patologia-necrotério.

E o plantão ainda não acabou...

6h22 – Formalizei a comunicação ao serviço de vigilância epidemiológica do hospital para notificação de casos novos de covid no hospital.

Finalizando o plantão. Repasso com nove pacientes internados, todos gravíssimos e infelizmente um veio a óbito. Consequentemente foi solicitada vaga para internação de novo paciente grave que virá para UTI.

6h57 - Passo o plantão com as anotações e tiro toda paramentação. Mais um plantão vencido. Estou exausta, cansada, triste, esgotada emocionalmente e fisicamente. Mas, estamos na luta, esse é meu papel, agradeço a Deus de ter essa oportunidade para oferecer um cuidado, uma assistência a esses pacientes nesse momento tão crítico que estamos enfrentando.

7h03 - Finalizo o plantão, graças ao bom Deus. Espero sinceramente que as pessoas tenham consciência da gravidade que estamos enfrentando.

Mato Grosso do Sul tem, hoje, 196 mil infectados pela covid-19 e 3.667 mortes. Dos óbitos, 39 aconteceram nas últimas 24h, conforme último boletim da SES (Secretaria Estadual de Saúde).

*As fotos usadas na reportagem são de plantões da UTI Covid da Santa Casa e Hospital Regional, apenas como ilustração, não sendo do plantão descrito.

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