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Cidades

Líder indígena que morreu sem "tekohá" inspira jovens na luta por demarcações

Símbolo da resistência, Damiana Cavanha lutou pela demarcação de sua terra, Apyka'i, em Dourados

Por Mylena Fraiha | 19/04/2024 09:47
Damiana ao lado de seus parentes, na Apyka’i, região de Dourados (Foto: Reprodução/Cimi/Ruy Sposati)
Damiana ao lado de seus parentes, na Apyka’i, região de Dourados (Foto: Reprodução/Cimi/Ruy Sposati)

Eu não vou abaixar minha cabeça. Vamos à luta. Vamos levar adiante essa batalha".

Essas foram as palavras de Damiana Cavanha, líder e rezadeira guarani-kaiowá, ditas em 2016 ao Campo Grande News. Oito anos após essa entrevista, ela morreu aos 84 anos sem testemunhar a demarcação de sua terra, Apyka'i, em Dourados, a 251 km da Capital.

Nesta sexta-feira (19), é celebrado o Dia dos Povos Indígenas no Brasil. Para os indígenas, porém, é mais do que uma data de celebração, principalmente para os que são o legado da força da guerreira Damiana, que virou símbolo da resistência e luta pela retomada de terras considerada de ocupação tradicional no sul de Mato Grosso do Sul.

A data, para quem pertence às comunidades, convida a refletir e não deixar esquecer da "guerra" travada pelos ancestrais, que frequentemente perderam a vida ou foram assassinados, sem testemunhar a demarcação de suas terras - como é o caso de Damiana.

Durante discurso em Campo Grande no dia 12 de abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Lula (PT), propôs ao governador Eduardo Riedel (PSDB) a compra de terras em parceria com o governo federal para salvar os indígenas que vivem acampados em Dourados. A ideia não agradou ao movimento indigenista, que defende a demarcação de terras onde indígenas ou seus ancestrais já vivem ou viviam - as chamadas áreas de ocupação tradicional -, justamente a luta da líder indígena.

O Cimi (Conselho Indigenista Missionário), por exemplo, se posicionou contra a proposta. "O discurso que abre margem para interpretações que invertem a ordem constitucional, no que diz respeito ao direito originário que os povos indígenas têm à demarcação de suas terras tradicionalmente ocupadas", explica.

De acordo com a entidade, a lógica deve ser outra. "Ao invés de propor a compra de terras para indígenas, Lula poderia propor, como fez há 20 anos, a aquisição de terras não tradicionais para assentar os não indígenas de boa-fé que eventualmente tenham recebido títulos do Estado e que serão impactados pela demarcação das terras indígenas".

Em suas redes sociais, a Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani, também se posicionou sobre a fala do presidente. Para os guarani-kaiowá, “essa proposta de compra de terras abre um precedente perigoso, que inclusive foi aberto no debate sobre o Marco Temporal no STF [Supremo Tribunal Federal]. Isso descaracteriza inclusive o direito originário, bem anterior à própria Constituição de 1988”, apontam.

Resistência - Damiana nasceu em 1939 e foi prova viva da necessidade que os povos indígenas têm de estar no lugar a qual “pertencem”. Desde a década de 1980, ela e sua família reivindicaram o território de Apyka’i até serem expulsos por fazendeiros, o que os levou a dispersarem-se pelas reservas indígenas de Dourados e Caarapó.

Em meados dos anos 90, Damiana e sua família tentaram retornar a Apyka’i, mas foram novamente expulsos, repetidas vezes, ao longo dos anos, enquanto o local se transformava em uma fazenda com canaviais às margens da BR-463, perto de Dourados.

Em 2012, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) instituiu um grupo de trabalho para iniciar o processo demarcatório, nunca levado adiante. Apesar disso, Damiana viveu acampada com sua família por todo esse tempo em seu tekohá - que em guarani, significa “o lugar onde somos o que somos”.

Sentimos a terra de um jeito diferente... Pertencemos àquela terra... Não podemos ir para outro lugar. Como poderíamos ir para um lugar que não é nosso?", relatou Damiana à Agência Porantim em 2016.

Em alguns momentos, Damiana e sua família viveram às margens da rodovia, em outros, em meio às plantações de cana. O local, Apyka’i, na tradução guarani, significa "banquinho”, um lugar de descanso.

Ali foi onde Damiana enterrou nove parentes, vítimas de atropelamentos, contaminação por agrotóxicos e suicídios. Nos casos de atropelamento, como ela relatava, os motoristas fugiram sem prestar socorro.

Entre as vítimas estão Reginaldo Caires de Souza, 22 anos; Vagner Freitas, 40 anos; Sidnei Caires de Souza, 35 anos; Alzira Melita, 90 anos; seu marido, Ilário Caires de Souza, 50 anos; e seu neto Gabriel Lopes, 4 anos - este último teve o corpo despedaçado e espalhado pela rodovia.

Ela [Damiana] teve que recolher partes do corpo para conseguir enterrá-lo. Esse incidente nos faz questionar se o atropelamento foi realmente um acidente ou parte de um projeto de destruição dos povos indígenas”, explica o professor Tiago Botelho, que conheceu Damiana e seus parentes em 2015.

Túmulo de Gabriel Lopes, neto de Damiana, que faleceu aos 4 anos após um atropelamento. (Foto: Reprodução/Arquivo/Cimi)
Túmulo de Gabriel Lopes, neto de Damiana, que faleceu aos 4 anos após um atropelamento. (Foto: Reprodução/Arquivo/Cimi)

Despejos - Mesmo com os entraves legais e tensionamentos com fazendeiros, Damiana e sua família persistiram na ocupação do espaço. Além das tragédias das mortes, enfrentaram condições precárias de vida. Os guarani-kaiowá da Apika'y habitavam barracos improvisados, desprovidos de instalações sanitárias e energia elétrica.

Cozinhavam o pouco alimento que conseguiam em fogões improvisados e utilizavam água imprópria para consumo humano, retirada de um riacho contaminado pelos agrotóxicos das lavouras vizinhas. A comunidade Apika'y chegou a ser classificada como a mais miserável de Mato Grosso do Sul pelo MPF (Ministério Público Federal).

Em junho de 2016, indígenas da Apyka’i carregam armário durante desocupação de fazenda em Dourados (Foto: Arquivo/Leomar Mariano/Facebook) 
Em junho de 2016, indígenas da Apyka’i carregam armário durante desocupação de fazenda em Dourados (Foto: Arquivo/Leomar Mariano/Facebook)

De acordo com Tiago, em julho de 2016, ela e sua família precisaram lidar com policiais na porta do seu barraco, às 6h da manhã de um dia frio de inverno, para despejá-los – ela, filhos e netos.

“Estava chovendo e eles [policiais] quebraram os barracos e jogaram as coisas deles para o lado da rodovia. E a Damiana, muito triste, chorava porque não queria morar em um barraco de lona. Antes ela morava em uma casa de madeira e sapé”, explica o professor da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), hoje superintendente do Patrimônio da União em Mato Grosso do Sul e pré-candidato a prefeito de Dourados pelo PT.

Com o apoio de doações, ela reconstruiu sua casa e continuou a resistir, mesmo em condições precárias e, desde então, sem o direito de visitar seus familiares falecidos. “Ela foi impedida de ir ao cemitério de seus familiares porque os membros de sua família foram enterrados naquela propriedade, e ela não tinha permissão para entrar”, comenta Tiago.

Damiana e seu neto Sandriel Benites de Souza, que hoje tem 17 anos (Foto: Reprodução/Cimi/Ruy Sposati)
Damiana e seu neto Sandriel Benites de Souza, que hoje tem 17 anos (Foto: Reprodução/Cimi/Ruy Sposati)

Seu neto, Sandriel Benites Cario de Souza, hoje com 17 anos, foi uma das vítimas e testemunhas da violência cometida pela força policial. Na época, ele tinha 10 anos.

Lembro que era uma semana antes do meu aniversário. Eu senti medo, até chorei. Eram vários policiais com armas. Mas minha avó não tinha medo, era corajosa", relatou Sandriel em entrevista ao Campo Grande News.

Durante esse período às margens da BR-463, Damiana também recebeu em sua casa pessoas favoráveis à sua luta. Políticos, representantes da ONU (Organização das Nações Unidas) e da Anistia Internacional, ONGs nacionais e internacionais, juízes, artistas, jornalistas, estudantes e pesquisadores acadêmicos estiveram lá. No entanto, a demarcação nunca veio.

“Damiana era uma mulher que lutava para fazer valer a Constituição Federal. A Constituição garante a demarcação dos territórios indígenas, estabelecendo que, em até 5 anos após sua promulgação, todas as terras indígenas deveriam ser demarcadas pelo Governo Federal. No entanto, ao longo dos governos, seja de esquerda ou direita, essa garantia não foi cumprida”, comenta Tiago.

Em setembro de 2023, aos 86 anos, Damiana, após sentir dores e ter desmaios frequentes, foi levada às pressas ao Hospital da Missão Caiuá na tarde do dia 6 de novembro. Segundo sua filha Sandra, conforme relatado ao Cimi, já a caminho do atendimento, Damiana sofreu uma parada cardiorrespiratória e foi internada.

No dia seguinte, segundo laudos preliminares apresentados pela equipe médica à família, teria sido identificada uma infecção generalizada gravíssima, que tirou a vida de Damiana. “A morte de Damiana é resultado de uma série de violações. Uma mulher abandonada às margens da rodovia, devido à omissão do poder público. É uma morte sintomática do que a violência de direitos humanos pode acarretar”, enfatiza Tiago.

Atualmente, o local permanece sem demarcação e desabitado. No entanto, os corpos de parentes de Damiana ainda repousam ali. “Hoje, ao passarmos por lá, não encontramos mais a casa, nem ninguém. A maioria dos familiares está em Caarapó, enquanto alguns estão em outros territórios. A Apyka'i é agora um espaço de resistência que perdura na memória das pessoas", comenta o professor.

Legado para juventude - "Ela sempre me falava que a gente precisava lutar e seguir em frente. Ela dizia: 'Eu vou conseguir a terra para vocês. Vocês vão ver'", relembra com saudade o jovem guarani-kaiowá Sandriel.

Após perder o pai, ele foi criado por Damiana, a quem ele reconhece como avó e mãe ao mesmo tempo. Sandriel foi um dos netos de Damiana que também viveu às margens da rodovia. Com ela, ele aprendeu a importância da reza, da terra e da coragem para lutar por seus direitos. "Eu me inspiro muito nela. Toda vez que vou fazer algo, eu lembro da coragem dela e tento ser corajoso também. Temos que dar continuidade ao que ela começou".

Ele relata que com sua avó, Damiana, também teve a primeira experiência com a militância indigenista. "Eu ia bastante com ela em eventos e manifestações. A primeira vez que viajei com ela eu tinha seis anos, fomos para Brasília. Ela também me levava nas reuniões da Aty Guasu. Sempre bate uma saudade quando lembro".

Hoje, Sandriel segue estudando e trabalhando. Seu sonho é cursar Direito e continuar compondo suas músicas, que também são uma forma de resistência. "Acho importante falar sobre nossa comunidade por meio da arte, para que as pessoas possam conhecê-la melhor. Um exemplo disso é o Brô Mc's. Desde pequeno, no início da carreira deles, eu já cantava suas músicas. Minha mãe [Damiana] dizia que eu tinha cara de quem também faria isso, e nós ríamos juntos”.

Assim como Damiana, Sandriel permanece com a esperança de demarcação dos territórios tradicionais de Mato Grosso do Sul. "Na minha visão, a demarcação é importantíssima. Porque comprar terras, na minha opinião, não será a mesma coisa que a demarcação. Eu tenho esperança de que iremos conquistar essa terra. Vamos lutar por ela e vamos manter o legado dela. Terminaremos o que ela começou".

Professor kaiowá Fábio Turibo, durante aula na UFGD (Foto: Arquivo pessoal)
Professor kaiowá Fábio Turibo, durante aula na UFGD (Foto: Arquivo pessoal)

Além de Sandriel, outros jovens que conviveram com Damiana também guardam o legado de sua luta. Um deles é o professor kaiowá Fábio Turibo, de 28 anos. Ele a conheceu em 2015, quando ainda era acadêmico, após uma visita organizada pela UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados).

Damiana é um marco histórico de luta, não só para as mulheres, mas também para nós jovens indígenas", diz Fábio.

O professor também é um dos responsáveis pela criação da RAJ (Retomada da Aty Jovem), organização da juventude Guarani Kaiowá e Nhandeva de Mato Grosso do Sul. No ponto de vista dele, o acesso à educação é um dos direitos que precisam ser garantidos.

“Hoje temos várias lutas e forma de reivindicar. A primeira é a questão do território, que é a nossa principal reivindicação. Mas como professor, eu acho que é preciso ter oportunidades nas faculdades. Os jovens precisam ter mais oportunidades e melhores condições de transporte das aldeias para as universidades. Também temos a demanda de estradas, água potável, saúde, lazer e moradia nas aldeias”, explica Fábio.

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