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Capivara Criminal

Carta anônima à PF desenhou "triângulo das drogas" de MS

Correspondência tinha nomes que foram "caindo" por envolvimento com o crime. Outros conseguiram se livrar

Marta Ferreira | 27/06/2021 14:54
Arte: Guilherme Correia
Arte: Guilherme Correia

No dia 17 de fevereiro de 1998, quando ainda se escrevia cartas rotineiramente – já que a internet era recurso disponível a poucos – comunicação postada nos Correios de Campo Grade endereçada à chefia da Polícia Federal em Mato Grosso do Sul fez algo hoje descrito como “desenhar” uma situação: deu nomes, endereços, telefones e detalhou forma de agir de pessoas que serviam ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro na ponta sul do Estado, no chamado “triângulo das drogas”.

As cidades listadas nessa denúncia eram Ponta Porã, Amambai, Coronel Sapucaia e Antônio João. Como se sabe, são municípios cuja história, para ser contada, precisa passar pela atuação do crime organizado. E também pelo perfil de seus patrocinadores, ou barões, ou apenas: narcotraficantes.

Anônima, a carta foi escrita por alguém de dentro desse submundo, como a própria Polícia Federal suspeitou na época, tal a quantidade de pormenores. Personagens e fatos já estavam no radar da força de segurança dedicada a combater o tráfico internacional. Outros seguem até hoje.

Lista com 35 nomes, 33 pessoas e duas empresas, foi tirada da carta, dando suporte a investigações que, em parte dos casos, naufragaram, sob a égide da “falta de provas”.

Para outros nomes, chegou o dia em que os indícios viraram provas, suficientes para levar à cadeia homens e mulheres conhecidos pela atuação criminosa.

Tomei esta decisão porque estamos indignados com certos acontecimentos. Estamos vendo a máfia crescer ilicitamente, as pessoas honestas repudiando e pedindo socorro", dizia o remetente.

Trecho transcrito da carta anexado a ação judicial. (Foto: Reprodução processo)
Trecho transcrito da carta anexado a ação judicial. (Foto: Reprodução processo)

Conhecia ... - Mais de duas décadas depois, ler a transcrição da correspondência é deparar com algo semelhante ao resumo de relatório sobre barões do comércio ilegal de maconha e cocaína e seus comandados.

Vejamos: Luiz Carlos da Rocha, o “Cabeça Branca”, preso só em 2017 em gigantesca operação e apontado como um dos maiores traficantes do Brasil, está presente.

Erineu Soligo, o “Pingo”, foragido por 14 anos, pego em 2010, está presente. Foi capturado no Paraguai, depois extraditado. Tinha sentenças a cumprir de quase 30 anos, em Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul, de onde é originário.

Rosa Maria Dias da Rocha, que ficou famosa como “contadora de Fernandinho Beira-Mar”, igualmente está com o nome anotado na lista enviada à PF. Acabou capturada em janeiro de 2008.

Pela investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, ela administrava casas de câmbio de Beira-Mar na cidade de Capitan Bado, separada por uma rua do município sul-mato-grossense de Coronel Sapucaia. O nome de Rosa apareceu em agenda que foi peças-chave contra o bandido carioca, atualmente hóspede do sistema prisional federal.

Outro “presente” na carta de 1998 é Aldo Brandão,  atrás da grades em Campo Grande, no Presídio de Trânsito, no complexo do Jardim Noroeste. Conhecido como “Sheik”, Aldo José Marques Brandão foi capturado em 2016, na operação Matterelo.

A ação foi desenvolvida em 12 cidades espalhadas por Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraná, São Paulo e Pernambuco. A acusação contra o grupo é de mandar para o exterior grandes carregamentos de entorpecentes usando o Porto de Santos.

“Sheik” havia sido condenado em ação relacionada à carta anônima. Chegou a começar a cumprir essa pena, mas acabou inocentado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

Em 2004, Aldo Brandão publicou anúncio em jornal para informar não ser integrante do PCC (Primeiro Comando da Capital) nem ter planejado assassinato do juiz federal Odilon de Oliveira, responsável por sua condenação.

Odilon, que se aposentou em 2018 para disputar a eleição ao governo do Estado, foi o magistrado que, a partir da representação da PF baseada na correspondência de fevereiro de 1998, mandou quebrar sigilo das pessoas citadas.

Das 33 relacionadas, 17 foram denunciadas pelo MPF (Ministério Público Federal), a partir de outras diligências adotadas, entre elas os testemunhos e os dados sobre movimentação bancária.  À época, foi solicitado o raio-x das contas dos investigados em agências bancárias das quatro cidades.

Entre esses nomes, surge outra "lenda" em Mato Grosso do Sul, o “Rei da Fronteira” Fahd Jamil. Ele também foi denunciado na carta anônima, como um dos chefes do crime organizado no “triângulo das drogas”.

A sentença, a cargo de Odilon de Oliveira, superou 20 anos. Mas não vingou. Foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal e “Fuad”, como também é conhecido, seguiu como um homem de ficha limpa até a operação Omertà, que o acusou de chefiar escritório de pistolagem em Ponta Porã. Por esse motivo,  ficou foragido por um ano e acabou se entregando em abril deste ano. Está no momento em prisão domiciliar, monitorado por tornozeleira eletrônica.

Viatura da Polícia Civil no local onde Mauro Parra foi executado na Linha Internacional, em 2018. (Foto: Arquivo/Cone Sul News)
Viatura da Polícia Civil no local onde Mauro Parra foi executado na Linha Internacional, em 2018. (Foto: Arquivo/Cone Sul News)

Mortes violentas - Há, ainda, os que não sobreviveram às duas décadas seguintes da carta-denúncia, na qual foram incluídos. João Morel, traficante adversário de Beira-Mar, foi morto no presídio de segurança máxima em Campo Grande, nos anos 2000. Levou golpes de arma artesanal até morrer, a mando do inimigo segundo as apurações.

Luiz Henrique Georges Rodrigues, o “Tulu”, sobrinho de Fahd, foi executado em outubro de 2012, na chamada Linha Internacional, em Ponta Porã.

Tido como “narcopiloto”, com horas de voo dedicadas às quadrilhas do comércio de produtos ilegais, Mauro Alberto Parra Espíndola, de 58 anos, também denunciado na carta, morreu em atentado em Pedro Juan Caballero, em 17 de outubro de 2018. Foi metralhado no carro, levado para uma clinica e dado como morto horas depois.

Volta e meia, alguém da correspondência ressurge no noticiário, como foi há duas semanas com Carlos Alberto da Silva Duro, o "Carlinhos Duro", citado na operação Mineração de Ouro", contra irregularidades implicando conselheiros do TCE (Tribunal de Contas do Estado). Duro, junto com dois irmãos, Dagoberto e Paulo, foi apontado como traficante à PF na famosa carta.

0 juiz aposentado Odilon de Oliveira foi responsável por condenações derivadas da carta anônima. Parte delas foi anulada. (Foto: Arquivo/Campo Grande News)
0 juiz aposentado Odilon de Oliveira foi responsável por condenações derivadas da carta anônima. Parte delas foi anulada. (Foto: Arquivo/Campo Grande News)

Foi condenado por  Odilon de Oliveira a 11 anos de prisão, mas também se livrou da pena no segundo grau, sob o argumento de falta de provas seu envolvimento com ilegalidades.

A coluna procurou o juiz aposentado Odilon de Oliveira, autoridade que teve ligação direta com as providências adotadas a partir da carta anônima. Ele disse não se recordar do teor específico desse documento. Lembrou que esse era expediente comum para denúncias envolvendo pessoas ligadas ao comando do narcotráfico na região.

Hoje, o caminho é mais curto. Quem tem denúncias a respeito pode fazer de forma anônima pelo serviço “Web Denúncia”, no site http://www.181.ms.gov.br/denuncia/

(*) Marta Ferreira, que assina a coluna “Capivara Criminal”, é jornalista formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), chefe de reportagem no Campo Grande News. Esse espaço semanal divulga informações sobre investigações criminais, seus personagens principais, e seu andamento na Justiça.

Participe: Se você tem alguma sugestão de história a ser contada, mande para o e-mail marta.ferreira@news.com.br. Você também pode entrar em contato pelo WhatsApp, no Canal Direto das Ruas, no número  67 99669-9563.

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