Aborto legal é longa jornada em MS e tem armadilhas fora das “4 linhas” da lei
Tema sofre reflexo ideológico e está em debate após proibição seletiva do Conselho Federal de Medicina
O aborto legal, aquelas poucas exceções em que a prática não é crime no Brasil, está no centro de intenso debate neste mês de abril, após o CFM (Conselho Federal de Medicina) ter proibido os médicos de interromperem gestação com mais de 22 semanas em caso de estupro. A “escolha seletiva”, somente quando há violência sexual, é combatida pela defensora pública Zeliana Sabala, coordenadora do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública).
Por que quando o feto é anencéfalo ou a gestação traz risco para a vida da mulher a assistolia é permitida? Só proibiu no caso de violência sexual. Se fosse um procedimento inadequado, deveria ser inadequado para todos os tipos de gestação em que se permite o aborto legal”, afirma Zeliana.
A coordenadora também relata que em Mato Grosso do Sul o aborto legal é literalmente uma longa jornada, pois o único hospital autorizado fica em Campo Grande – o Humap (Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian) –, obrigando meninas e mulheres a percorrerem quase 500 km do interior até à Capital.
Nesse caminho, surgem também exigência que não estão nas “quatro linhas da lei”, como Boletim de Ocorrência ou autorização judicial.
Para a defensora, o tema não escapa da incontornável divisão ideológica estabelecida no Brasil, onde direita e esquerda polarizam.
“Se há um componente ideológico na decisão? Com absoluta certeza. Quem é a favor disso são pessoas que, em tese, estão defendendo a vida do feto sem considerar o protagonismo, a autonomia da vontade da mulher, sua saúde física e mental. Outra questão que a gente enfrenta é a violência sexual contra crianças menores de 14 anos. Todas as crianças grávidas com menos de 14 anos tem direito ao aborto, mas isso não é divulgado. Temos notícias recentes de juíza perguntando se a criança pode ‘esperar mais um pouquinho’”, destaca Zeliana.
Em Goiás, por exemplo, lei prevê que as gestantes passarão a receber do Estado um exame de ultrassom para ouvirem os batimentos cardíacos do feto, inclusive aquelas que farão o procedimento de aborto. No Estado, só o HU (Hospital Universitário], em Campo Grande, realiza o procedimento de aborto legal.
"Em Mato Grosso do Sul, nós temos um único serviço de acesso ao aborto legal, que é em Campo Grande. Ok, é centro do Estado. Mas está distante de Cassilândia, a 400 e poucos quilômetros de Corumbá. É a nossa realidade, infelizmente. E sempre foi assim. Mas, na verdade, qualquer local preparado para fazer um parto cesárea ou normal pode fazer um aborto. A gente já teve caso no interior do Estado que o colega liga, agoniado, falando assim: o hospital aqui diz que se tiver ordem judicial, faz. O problema é entender que isso é serviço público e devia ser prestado por todos os serviços de Saúde no Estado. Todos, todos, todos”.
Também não é exigido Boletim de Ocorrência ou ordem judicial para o aborto legal.
Algumas pessoas falam: mas é só a mulher chegar lá e falar que foi vítima de estupro? É, é só. Mas isso não é só. Porque para a mulher conseguir faze isso ela teve que percorrer um caminho muito grande. Inclusive dela própria pensar sobre se vai abortar ou não. Já criança e adolescente menor de 14 anos tem direito de viver a sua infância e adolescência. Ser mãe nessa idade é uma violação de direitos sem tamanho”, diz a defensora.
Liminar nacional - A Justiça Federal de Porto Alegre determinou ontem a suspensão da norma imposta pelo Conselho Federal de Medicina. A juíza Paula Weber Rosito apontou que decisão do CFM contraria o Código Penal, pois a legislação não impõe qualquer limite de tempo gestacional para a realização de aborto legal. A decisão é liminar, com abrangência nacional. O caso também foi levado ao STF (Supremo Tribunal Federal), mas ainda sem decisão.
Publicada em 3 de abril, a resolução do CFM proibia a utilização da assistolia fetal exclusivamente nos casos de aborto decorrente de estupro. A técnica utiliza medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto, antes de sua retirada do útero, e é considerada essencial para o cuidado adequado ao aborto. Ou seja, o procedimento evita que o feto seja expelido com vida.
“É vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas”, informava o documento.
As 22 semanas correspondem ao fim do quinto mês de gestação. A defensora aponta que muitas mulheres deixam a gestação progredir, mesmo sendo vítima de estupro, por não ter conhecimento sobre o aborto legal.
Exceções ao crime - O aborto é crime no Brasil, mas desde 1940, dentro do Código Penal, existem três exceções: estupro, feto anencéfalo e quando a mulher corre risco de morte. Se os dois últimos são determinados pela natureza. A gravidez decorrente de estupro poderia ser evitada, bastando não ter violência sexual.
“Se as pessoas como um todo respeitassem a manifestação da mulher, a gente ia ter diminuição de violência obstétrica, de violência sexual, de violência doméstica e familiar, violência política de gênero. Toda violação de direitos humanos contra mulheres e meninas tem na base a ausência de respeito”, afirma a coordenadora do Nudem.
Em 2023, o Serviço de Atenção ao Aborto Legal e Violência Sexual do HU atendeu 49 pacientes, incluindo adultas, adolescentes e meninas. Dessas, 41 interromperam a gravidez. No ano passado, foram contabilizados 2.424 casos de estupro em Mato Grosso do Sul.
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