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Capital

Assédio, racismo e até ação por tortura provocam expulsão de motoristas de app

Na lista de acusações, tem motorista chamando uma passageira de gostosa e outro homem negro de macaco

Silvia Frias | 22/08/2022 08:34
Denúncias enviadas por passageiros das plataformas de tecnologia, que bloqueram as contas dos motoristas. (Foto/Reprodução)
Denúncias enviadas por passageiros das plataformas de tecnologia, que bloqueram as contas dos motoristas. (Foto/Reprodução)

Denúncias de racismo, assédio sexual, grosseria e até processos por tortura, roubo e estelionato são motivos para a expulsão de motoristas de aplicativo das plataformas em Campo Grande. Os profissionais são confrontados com as irregularidades e, alguns, até tentam provar inocência na Justiça, mas acabam vencidos pelo argumento da liberdade contratual, usado pelas empresas.

A reportagem encontrou 52 processos que tramitam nas Varas Cíveis de Campo Grande, que tem como parte as plataformas que atuam na cidade, figurando como réus ou autores. Destes, 26 foram protocolados por motoristas que se sentiram lesados ao serem suspensos e/ou bloqueados por duas empresas: a Uber do Brasil Tecnologia Ltda e a 99Pop.

“Gostosa” – Das 26 ações, 19 tramitam contra a Uber, empresa de tecnologia com 1 milhão de motoristas e 22 milhões de passageiros no Brasil.

Uma delas é de motorista de 41 anos, que trabalhou por 3 anos utilizando a plataforma da Uber. No dia 24 de setembro deste ano, teve a conta encerrada, sob alegação de ter cometido assédio. Pediu que a empresa apresentasse boletim de ocorrência e pagasse R$ 27,8 mil por danos morais, lucros cessantes e indenização.

Na defesa, a empresa apresentou os prints de denúncias feitas por usuários da plataforma. Em um deles, a passageira se disse constrangida com as investidas dele, dizendo que ela era “muito bonita e gostosa”.

Em outro caso, o motorista de 27 anos, ingressou com ação em dezembro de 2021, questionando o motivo da conta ter sido cancelada após sete meses de trabalho. O rapaz contestou a alegação apresentada a ele, de que teria cancelado, em um mês, 2.241 corridas, média de 74 por dia, sendo “humanamente impossível”.

Na ação, a assessoria jurídica da Uber, além de alegar o cancelamento excessivo, apresentou print de passageira, reclamando da atitude dele. “Me senti humilhada, mesmo pagando, me senti como estava me fazendo um favor (...) Cara estúpido!”.

Motorista alegou que racismo era "mimimi" e outro foi acusado de ver fimes com "mulheres peladas". (Foto/Reprodução)
Motorista alegou que racismo era "mimimi" e outro foi acusado de ver fimes com "mulheres peladas". (Foto/Reprodução)

Macaco - No processo protocolado em novembro de 2021 por motorista, de 47 anos, a reclamação é que foi bloqueado após 4 anos e 5 meses de trabalho. Alegou que não teve chance de se defender e pediu a reintegração da conta, além de ser indenizado em R$ 57,905 mil por danos morais e materiais.

A empresa apresentou três prints do sistema de comunicação com passageiros, em que demonstrariam a má conduta: em um deles, é acusado de ter deixado jovem com espectro autista, menina de 12 anos e criança de 2 anos em endereço diferente do pedido, às 23h, além de ter cobrado o dobro do valor da corrida. Em outras duas ocasiões, estaria embriagado e chamou passageiro de macaco.

Print de reclamação de usuária de plataforma, anexado a processo. (Foto/Reprodução)
Print de reclamação de usuária de plataforma, anexado a processo. (Foto/Reprodução)

A defesa do motorista contestou os prints, dizendo que as telas juntadas como prova estão incompletas e são inverídicas.

Outra ação, de 23 de dezembro de 2020, o motorista de 57 anos, pede reintegração na plataforma da Uber, além de pagamento de R$ 55,630 mil por danos materiais, morais e lucro cessante. Disse que foi indevidamente acusado de racismo e penalizado após um ano de trabalho com “nota excelente”.

A empresa anexou ao processo o print da tela da reclamação enviada por uma usuária da plataforma. “(...) o motorista começou a proferir falas racistas, que racismo não existia, que era ‘mimimi’, mesmo eu sendo negra (...)”.

A defesa do motorista alegou que a opinião sobre existência ou não de racismo e diferente de conduta racista. “Se uma pessoa manifesta sua opinião de que não existe racismo, o que se está dizendo, na verdade, é que ela própria não pratica nenhum ato discriminatório contra qualquer pessoa”.

Aviso da plataforma sobre conduta irregular. (Foto/Reprodução)
Aviso da plataforma sobre conduta irregular. (Foto/Reprodução)

A assessoria jurídica da 99 pop também recorreu aos prints de reclamações dos passageiros para justificar os bloqueios dos motoristas.

Motorista de 38 anos entrou com ação no dia 11 de novembro de 2021. Diz ter usado a plataforma por três anos por três anos, até ser bloqueado, sem que fosse informado o motivo, apenas com informação de que ele havia infringido regras da plataforma. O valor da causa foi calculado em R$ 52,239 mil. A assessoria jurídica da 99 pop anexou reclamação feita em 20 de setembro de 2020, de que ele estaria vendo “filme com mulheres peladas”.

A defesa do motorista contestou o motivo, dizendo que a reclamação apresentada é inverídica e que foi registrada em setembro de 2020, quase um ano depois do bloqueio definitivo.

Réus – Além das reclamações dos passageiros, tanto a Uber quanto a 99pop apresentaram como justificativa uma das piores infrações cometidas, a de motoristas acusados por crime e que respondem a processos penais.

É o caso de motorista de 44 anos, aposentado da Polícia Civil, que havia se cadastrado na Uber em 2017. Em novembro de 2019 pediu que a plataforma liberasse o acesso para que trabalhasse em Florianópolis (SC). No dia seguinte, foi bloqueado pela empresa, sob alegação de que era réu em processo de tortura.

A defesa do motorista alegou que o processo de tortura, ainda em tramitação, foi distribuído em 24 de julho de 2018, um ano após a checagem de dados feita pela plataforma, ocorrida em 2017. “A Requerida antecipou-se em condena-lo, em flagrante violação ao princípio doestado de inocência, insculpido na Carta Magna do Brasil”.

Pela 99 pop, há três ações em tramitação em Varas Cíveis de motoristas que foram bloqueados justamente por esta infração.

Checagem de dados mostra denúncia por crime de tortura. (Foto/Reprodução)
Checagem de dados mostra denúncia por crime de tortura. (Foto/Reprodução)

Um deles é de motorista de 48 anos, que entrou com processo pedindo indenização de R$ 48,5 mil, pelo bloqueio ocorrido após três anos de atividade. A assessoria jurídica alega que ele responde a acusação de roubo, em ação de 2007.

Outro caso é de motorista de 33 anos, descredenciado em abril de 2021, sem informação do motivo. No processo, consta que foi decorrente de ação por estelionato, de 2020.

O terceiro motorista, de 36 anos, que contestou o bloqueio, em março de 2021, seria réu em três processos por roubo, segundo assessoria jurídica da empresa. Em sua defesa, o homem alegou que a identidade dele foi usada pelo verdadeiro réu, informação que consta nas ações. Mesmo assim, não teve a conta desbloqueada.

Contrato – Dos processos avaliados contra a Uber e a 99 pop, a reportagem encontrou argumentos semelhantes usados pelos motoristas: a de que não tiveram direito ao contraditório e sofreram danos financeiros com a suspensão. Por isso, pediram inversão do ônus da prova e recorreram ao Código do Consumidor para contestar a quebra de contrato.

Dos 12 que já tiveram sentença, 10 foram favoráveis às empresas e apenas dois tiveram decisão parcialmente procedentes aos motoristas, como a reintegração no aplicativo e pagamento de R$ 5 mil por danos.

Das 10 ações improcedentes, o juiz, além de levar em conta a maioria das provas apresentadas, também acatou o principal argumento das empresas: o do princípio da liberdade contratual, previsto no artigo 421 do Código Civil.

“A empresa não faz promessa de cadastro eterno”, diz uma das ações. “Resta cristalino que as cláusulas contratuais demonstram que a ré poderia pôr fim ao suspender o contrato tanto de forma imotivada como de forma motivada”, relata.

Em alguns casos, as plataformas também recorreram ao artigo 5º da Constituição Federal (ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado), obtendo sucesso nas decisões.

Expectativa - O advogado Hélio Santos Filho, professor de Direito da UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), disse que, em regra geral, a improcedência da ação acaba sendo o resultado mais comum quando se recorre à Vara Cível.

“Realmente, se for para Justiça Comum, vai cair nessa situação, vai se discutir relação contratual de natureza cível, e é complicado provar que tem o prejuízo, existe a liberdade de contratação”.

Segundo o professor, o cenário muda se, em caso real de desligamento irregular, o caminho jurídico escolhido for a Justiça do Trabalho.

A mudança é baseada em decisão favorável do TST (Tribunal Superior do Trabalho), de 11 de abril de 2022, que reconheceu o vínculo empregatício de motorista que entrou contra empresa, no Rio de Janeiro. A Uber entrou com recurso de embargos, que ainda está pendente de julgamento.

A reportagem entrou em contato com as assessorias da Uber Tecnologia Ltda e a 99 pop sobre os processos, mas não obteve retorno até o fechamento do texto.

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