Centro viu 14 reviver, mas segue com desafio de habitar prédios fantasmas
Dois lados da mesma moeda em 2019 tiveram a 14 de Julho que voltou à vida, mas frustração em ocupar Hotel Campo Grande
Céu azul é indício de que a cortina cinzenta de chuva deu uma trégua e deixou o “teto” sobre a Rua 14 de Julho brilhar em uma manhã de sexta-feira. Agora sem fios a cruzar as fachadas, tem um misto de moderno e antigo, o que reforça a condição e atemporal da região que sobreviveu aos anos e reviveu na "Nova 14 de Julho".
Tanta pressa e fluxo colorido de quem vai ali para passear além de comprar, esconde, por outro lado, enormes fantasmas sólidos, à espera de gente que dê vida aos velhos corpos de concreto na vizinhança. No centro, neste 2019 que já se vai, tempo novo e tempo velho começam a conviver bem, mostrando que não há bom futuro sem um pouco de passado, mas indicando ainda o desafio de tirar velhos preconceitos que impediram que projetos conectados com as necessidades atuais ganhem vida, como o de transformar o abandono do Hotel Campo Grande em movimento com habitações populares.
A história de uma obra - Há quase dois anos (1 ano e 9 meses) o ambicioso Reviva Campo Grande começou com as obras na 14, tentando não se distrair com as críticas que seguiram ao longo de toda a obra (trânsito parado, comércio que morreu, andar é impossível). A histórica iniciativa, saiu do papel com a inauguração no dia 29 de novembro que levou milhares para celebrar o centro.
No dia 15 de maio de 2018, o prefeito de Campo Grande, Marquinhos Trad (PSD), assinou o contrato da obra, com largada oficial dos trabalhos no dia 4 de junho de 2018. Mesmo sem relógio, que voltou na inauguração, o tic-tac marcava o passo do quebra-quebra da rua, lama, canteiro de obras, cenário que pôs medo nos comerciantes que não economizaram nas reclamações.
A crise que assolou o País não desanimou a prefeitura que foi buscar em banco internacional os recursos para viabilizar essa que talvez seja sua maior herança política em Campo Grande. O BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), então, liberou U$ 56 milhões (cerca de R$ 175 milhões), para execução da restauração completa da região central. Só com a Engepar, principal executora da revitalização da 14, foram aplicados, inicialmente, R$ 49.238.506,82, que pularam para R$ 60.455.110,03 com o aditivo no final de agosto.
Fiação invisível – Uma das partes mais arrojadas desse projeto foi a mudança na fiação elétrica que se transformou em uma vanguarda urbana. A energia saiu do céu e foi, invisível, parar debaixo da terra. Uma vila subterrânea abriga, agora, essa estrutura de energia elétrica. As casinhas incluem, em 1,4 km da 14, 50 mil metros de cabos só para energia, rede de telefonia, tv por assinatura e sinalização semafórica. O sistema inclui, ainda, a rede de água e esgoto, de drenagem e de gás canalizado.
Chama atenção, também, o detalhe de paisagismo. Pensado em cada detalhe, árvores de espécie e tamanho próprio a um centro de Capital do cerrado pairam na 14. No final, esses acabamentos representaram maior cansaço. Como quem nada demais e cansa ao quase chegar à margem. Marquinhos declarou, à época, que a fase final foi “a mais custosa”.
Quem ficou de fora - Foi custosa, também, para quem sentiu fazer parte de um passado jogado fora. Reportagem do Campo Grande News, contou, por exemplo, a história do engraxate André, que lustrou “a história de Mato Grosso do Sul” por meio dos calçados de seus figurões, eternizado em imagem do fotógrafo Roberto Higa onde aparece, jovem, engraxando os sapatos do ex-prefeito Lúdio Coelho.
André foi encaixado na modernidade. Projeto da Prefeitura é dar uniforme a ele, que deixa a 14 para ir ao Pátio Central, onde deve trabalhar a partir de agora. Outros não tiveram a mesma sorte. Os tradicionais ambulantes, pipoqueiros, vendedores de churros, símbolos clássicos que, talvez, deveriam sempre encontrar lugar em região que é tão atemporal.
O fantasma dos fantasmas – Uma grande frustração também atingiu a Prefeitura que tentou e tentou, mas não conseguiu ocupar com projeto de habitação popular o Hotel Campo Grande. Localizado na Rua 13 de Maio, quase na esquina com a Cândido Mariano, o imenso complexo está sem atividade, praticamente, desde 2002. Funciona por ali, apenas, agência bancária e uma loja de produtos populares.
Há 18 anos fechavam-se as portas de um dos mais luxuosos hotéis de Mato Grosso do Sul, inaugurado em 1971 pela família Coelho, com investimento vindo do dinheiro produzido pela criação de gado. Desde o fechamento, dos 13 andares apenas o térreo teve algum tipo de ocupação, com lojas de produtos populares e até uma boate.
A família dona do empreendimento sempre disse ter interesse em reabrir o hotel, e mantém essa declaração, mas sequer concluiu o processo de inventário em que o bem está listado. Já são 23 anos da ação de inventário aberta 10 dias depois da morte do produtor rural José Vicente de Paula, falecido em 23 de fevereiro de 1996. As dívidas são milionárias.
Só com o Banco do Brasil, com valor atualizado em 2016, passa dos R$ 55 milhões. A soma é bem maior do que a avaliação do hotel, que, conforme consta do processo, é em torno de R$ 14 milhões, na última avaliação feita, em 2014.
A ideia da Prefeitura era transformar os 82 apartamentos e duas suítes em moradia populares. Orçado em R$ 38 milhões, o projeto foi apresentado pelo prefeito ao Ministério do Desenvolvimento Regional em Brasília. No térreo, funcionaria um setor de atendimento da Prefeitura, além de uma base da Guarda Municipal no Centro. A maquete projetada inclui a figura do poeta Manoel de Barros na fachada em concreto aparente do hotel. O nome seria "Menino do Mato", titulo de uma das últimas obras do escritor falecido em 2014.
Então, chuva de críticas. Nas redes sociais ou até ao vivo, incluindo de organizações que expuseram muito preconceito, mas também medo de que o hotel virasse um favelão. Com paciência, a Prefeitura democratizou a ideia, promoveu discussões, mas no fim, era tarde demais. Perdeu o prazo do recurso, atrasado por ideias de quem, pareceu, tem medo de conviver com o diferente.
Ainda assim, o projeto não morreu e agora que as pessoas parecem terem sido mais persuadidas, a ideia é tentar novos recursos. Na esteira do velho hotel ainda há, ao menos, 8 edifícios no centro pedindo para serem revitalizados e tornarem-se casa para quem quiser viver na região mais histórica de Campo Grande.
Quem te viu, quem te vê – Quase 1 mês depois da inauguração da nova 14 é, praticamente, unanimidade os muitos elogios sobre o projeto, seja de quem trabalha ali ou de quem visita para passear. Teve quem achou que a região fosse ficar no passado – perdendo espaço para os shoppings centers, invenção moderna -, esvaziado. Em 2019, entretanto, o movimento, no mínimo, duplicou nesse final de ano com um gostinho de tempos antigos onde passear na 14 era tradição.
As vendedoras Vitória Almeida, 19 e Dhoyovanna Ortega, 22, passam o dia no entrocamento da 14 com a Avenida Afonso Pena, em uma banquinha que comercializa capinhas e outros artigos para celulares. Para elas, a revitalização deixou a região “uma maravilha”, apesar do medo, que ainda paira, de as festas passem e levem embora o público.
“Antes da reforma era um desastre, depois melhorou muito, vamos ver em janeiro. Ficou mais confortável. Como vendedora está uma maravilha”, disse Ortega. Para ela, ainda assim, faltam cafés, bares e restaurantes. “Aqui praticamente só tem uma churrascaria, faltam locais para trazerem mais gente. Domingo passado foi triste de ver, não tinha ninguém [durante show musical]”.
“Agora tem mais segurança, cada esquina tem um policial”, opinou Vitória. As duas afirmam que projetos de moradia pelo centro iram aumentar, ainda mais, os lucros dos comerciantes. “Ficaria mais seguro por ter mais gente andando por aqui”, disse Dhoyovanna.
Gerente de uma joalheria na 14, Kleine Rodrigues Cristal, 32, tem a mesma opinião. “Com certeza seria melhor, quanto mais habitação, melhor”. “Aqui mudou muita coisa, agora tem um fluxo maior de famílias passeando. Está uma 14 linda, as vendas melhoraram muito. O mais gostoso é ver as pessoas passeando. Vamos ver como vai ficar depois do Natal”, comentou.
“A gente tinha que ter um projeto de estacionamento. É muito difícil. As famílias estão vindo mais depois das 20h em diante. Segunda coisa é que deveria ter food trucks, barzinhos, com certeza seria bom”, emendou ela.
Vendedora de uma loja de artigos diversos – de capinhas de celular a canecas com motivos bem diversificados – Elaine Dutra, 46, afirma que o movimento está aquecido. Ela sente falta, ainda assim, dos tradicionais vendedores de pipoca e churros. “Seria bom ter eles de volta”, disse. “Precisaria reformar essas casas antigas para o pessoal morar”, afirmou.
Natalia Bacha, 38, morou 8 anos em São Paulo – cidade que também serviu de inspiração ao projeto – mas agora ajuda o pai no restaurante da família na 14 de Julho. Ela diz que o número de clientes “dobrou”. “Principalmente no almoço, depois que inaugurou o movimento aumentou muito”.
“Lembro que antigamente tinha muitos pontos para comer por aqui. Tem cliente que vem aqui e me falam que é o único lugar para comer que não é de chineses”, brinca. Sobre os projetos de habitação, Natalia faz uma pausa, pensou e dispara: “não sei, aqui sempre foi comercial”. A pausa seguiu. “Talvez fosse legal, ter mais gente aqui”.
“No geral melhorou muito. Uma hora precisaria ter [revitalização]. Foi uma obra muito bem planejada, até as árvores. A gente rega as plantas e tira o lixo todo dia e até orienta os outros comerciantes”, disse ela.
Desafio agora é habitar - Arquiteto e urbanista, o diretor de habitação e programas urbanos da nova Emha (antiga agência municipal de habitação e, agora, Amhsaf, a Agência Municipal de Habitação Social e Assuntos Fundiários), Gabriel Gonçalves explicou que Campo Grande foi quase portfólio e projeto piloto que seria exibido pelo Ministério de Desenvolvimento Regional em todo o Brasil, com o hotel Campo Grande.
“A gente teve uma oportunidade dada pelo governo quando a gente apresentou o projeto, o Ministério de Desenvolvimento Regional se interessou muito por todo alinhamento com a polícia nacional que estão desenvolvendo. Queriam ampliar e fazer de Campo Grande referência”, disse.
Depois das críticas, contou, começaram os debates. “A gente resolveu levar a sociedade à discussão porque vivemos em uma democracia, mas a gente tinha pouco tempo pra fazer isso”, citando os conselhos, universidades e a Câmara Municipal. “Recebemos apoio massivo, inclusive na Câmara dos vereadores, porém alguns contrários vieram com informações e argumentos muito rasos, sem embasamento técnico, tentando fazer com que o entendimento ficasse fora daquilo que a gente estava almejando”, comentou.
“A gente não parou, chamamos a CDL, que foi outra opositora forte, com argumentos rasos e preconceituosos, mas conseguimos deixar claro e no final falaram que apoiavam e a gente convidou para apresentar o projeto e não vieram. A gente perdeu esse recurso nesse momento, mas a cidade ganhou muito com a discussão, os vereadores comentaram que costumavam discutir iluminação, segurança e a gente chegou com a discussão com nível elevado de urbanismo que fizeram eles pensarem em muita coisa”, avaliou.
Agora, o plano, além de não desistir desse projeto, é elaborar projetos para os outros fantasmas de concreto do centro. “Quando a gente fez o levantamento identificamos 8 edificações compatíveis com habitação, tem muito mais que a gente tem que fazer o levantamento e custos”, contou.
“Para esses recursos o que casou melhor foi o hotel campo grande, mas tem edificações com custo de R$ 12 e 13 milhões para reformar”, disse.
No fim, argumenta o arquiteto, habitar esses velhos fantasmas não é só um projeto de engenharia, é também um projeto de saúde e bem viver. “Quando a gente pensa em uma cidade saudável, a gente pensa em uma cidade com diversidade social, com mobilidade urbana que não dependa só de automóveis individuais, mas que tenha transporte coletivo, que seja caminhável e pedalável”, explica.
“A gente junta habitação, trabalho, lazer, a gente tem menos tempo de translado, menos doenças psíquicas, mais tempo para um trabalhador ficar com a sua família. Com isso até mesmo gastamos menos com SUS, a gente investe na saúde da cidade”, finaliza.
Quem sabe em 2020...