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Capital

Em hospital de meio século, capelão se lembra de 8 casamentos em leitos de morte

Além de casamentos, Edilson dos Reis diz que já testemunhou outros sonhos realizados por pacientes terminais

Por Mylena Fraiha | 07/04/2024 08:48
 Edilson dos Reis, capelão e especialista em saúde mental, que há 31 anos testemunha as histórias pelos corredores e salas do Hospital Universitário (Foto: Paulo Francis)
 Edilson dos Reis, capelão e especialista em saúde mental, que há 31 anos testemunha as histórias pelos corredores e salas do Hospital Universitário (Foto: Paulo Francis)

"Este hospital tem muitas histórias. Eu mesmo já celebrei oito casamentos de pacientes em leito de morte", relata Edilson dos Reis, capelão e especialista em saúde mental, que há 31 anos testemunha a vida e a morte pelos corredores do HU (Hospital Universitário) de Campo Grande, que completa 49 anos de existência neste ano.

Entre os oito casamentos, Edilson recorda com carinho um ocorrido cerca de 15 anos atrás, envolvendo um paciente de 82 anos que enfrentava uma doença terminal. "Ele já estava em um relacionamento há muitos anos e tinha netos. Um dos netos perguntou qual era o seu sonho, e ele respondeu que era se casar e receber a bênção de um padre ou pastor em sua aliança com a esposa. Então, a família entrou em contato comigo e organizamos a cerimônia. No dia seguinte, realizamos o casamento no leito do paciente".

Outro caso que comoveu Edilson envolveu um paciente também em estado terminal, mas que desejava oficializar uma união que mantinha há 10 anos. "Ele queria garantir que sua esposa não perdesse seus bens após sua partida, então organizamos uma cerimônia de casamento para legalizar essa questão. Esse tipo de pedido é comum entre pacientes terminais, pois desejam resolver questões importantes antes de partir".

Pessoas caminham pelos corredores do Hospital Universitário, em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)
Pessoas caminham pelos corredores do Hospital Universitário, em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)

Enquanto caminha com a reportagem pelos corredores do hospital, o capelão explica que o desejo de realizar sonhos é muito comum entre os pacientes desenganados.

São três coisas que notei ao longo desses anos. Quando estamos próximos do fim, queremos realizar nossos sonhos, pedir perdão ou perdoar e dizer que ama alguém”, revela Edilson dos Reis.

Em alguns casos, os sonhos podem ser os mais simples e curiosos. "Uma vez, uma criança paciente terminal de câncer tinha o sonho de comer lanche do MC Donald’s, porque ela só tinha visto em propaganda. Com a autorização do médico, a equipe comprou um lanche e trouxe".

Em outros casos, a vontade é simplesmente expressar para os familiares seus sentimentos mais íntimos. "Eu lembro de uma senhora que tinha dificuldade em dizer que amava os filhos. Então falei para ela escrever. E ela fez uma carta para os filhos, dizendo que os amava. Depois disso, ela faleceu".

Compartilhando grande parte de suas histórias com o HU, hoje Edilson segue como responsável pelo setor de capelania. Sua função, para além da religião, é trazer conforto e ser um ombro amigo para pacientes e funcionários que lidam com o sofrimento mental. "Recebo várias pessoas na minha sala. Estudantes que trabalham aqui, funcionários do hospital, familiares de pacientes".

Despedidas  - Para aqueles que trabalham diariamente no HU, a rotina de lidar com pacientes não os deixa imunes a compartilhar suas histórias e seus dramas. São encontros que marcam ambas as partes.

Exemplo disso são as cartas recebidas por Edilson de crianças e adolescentes que agradecem sua companhia durante o tratamento médico. “Criança brinca, criança desenha. Então já recebi muitas cartas e desenhos de pacientes do setor de oncopediatria. Algumas delas faleceram, mas guardo essas lembranças”.

Edilson mostra desenhos que recebeu de pacientes (Foto: Paulo Francis)
Edilson mostra desenhos que recebeu de pacientes (Foto: Paulo Francis)

Mesmo após anos trabalhando em hospitais e tendo experiência na área da saúde mental, Edilson comenta que perder um paciente nunca é fácil. Apesar de corriqueiro, ele menciona que lidar com a morte de um paciente é um tema não muito discutido entre os profissionais de saúde. “Quando um paciente parte, é como descascar uma cebola. É como se, ao perder um paciente, uma parte de nós também se fosse, e muitas vezes é difícil expressar esse sentimento de dor”.

Diante da alta demanda e rotatividade de pacientes, Edilson destaca que a dor da perda muitas vezes é negligenciada e ignorada pelos profissionais da saúde. "Às vezes, quando alguém falece, o enfermeiro imediatamente precisa preparar o leito para receber outro paciente. A cama é higienizada, os lençóis são trocados e, em breve, outro paciente ocupará o mesmo espaço. É uma nova história, novos desafios e uma nova dose de esperança. Mas a falta de reconhecimento do luto pode resultar em um intenso sofrimento emocional".

Fachada do Hospital Universitário, na Avenida Senador Filinto Müler, na Capital (Foto: Paulo Francis)
Fachada do Hospital Universitário, na Avenida Senador Filinto Müler, na Capital (Foto: Paulo Francis)

Luto compartilhado - Além do trabalho como capelão, Edilson hoje coordena o Núcleo de Estudo, Pesquisa, Assistência e Extensão e Apoio a Perdas e Luto. O grupo surgiu em 2020 e atua com atendimentos em grupos de apoio e desenvolve pesquisas sobre o luto.

Segundo ele, o objetivo é ser um centro de referência para estudar o luto em suas diversas formas. "Quando falamos de luto, falamos de perda. Então temos a obrigação de respeitar essa dor. O luto não tem uma data de término definida, e é um mito acreditar que podemos estabelecer limites de tempo para ele", acrescenta.

Para auxiliar pessoas que estão passando pelo processo de luto pela perda de familiares e amigos, a UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) retomou em março os atendimentos semanais e gratuitos do Grupo de Apoio ao Luto. Os encontros são abertos a toda a comunidade e ocorrerão todos os sábados, das 14h às 16h30, na Unidade 6, ao lado da Biblioteca Central.

Lotada, sala da unidade 6, na UFMS, recebe encontro do grupo de apoio ao luto (Foto: Arquivo pessoal)
Lotada, sala da unidade 6, na UFMS, recebe encontro do grupo de apoio ao luto (Foto: Arquivo pessoal)

De acordo com Edilson dos Reis, o grupo procura ser um ambiente onde as pessoas enlutadas encontrem um espaço de mútua ajuda, sociabilidade, validação de reações de perda, bem como de aprendizagem de novos comportamentos e ações frente a diferentes perdas e luto. Para participar, não é necessário fazer nenhum tipo de inscrição, nem pagar taxas.

Um aspecto importante dos grupos de apoio é que eles permitem que pessoas que estão passando por situações semelhantes se identifiquem umas com as outras. É um espaço onde elas podem expressar livremente sua dor, angústia e até mesmo seus sentimentos de culpa, compartilhando experiências de sofrimento mútuo”, explica o coordenador do grupo.

Frase estampa recepção do Hospital Universitário, em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)
Frase estampa recepção do Hospital Universitário, em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)

Já nas vertentes de pesquisa e formação acadêmica, Edilson explica que o grupo tem realizado o mapeamento de filhos de vítimas de feminicídio, para tentar entender como o processo de luto é vivenciado nestes casos.

"Agora, estamos interessados principalmente em estudar e pesquisar a questão dos filhos de vítimas de feminicídio nos últimos 10 anos. Queremos mapear quantos órfãos do feminicídio existem e como eles passaram por esse processo de luto. Isso é uma das pesquisas em andamento", comenta Edilson.

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