Com Incra sob suspeita, assentado “sua” na reforma agrária que funciona
Da terra “fraca”, brota a força do trabalho para superar abandono no Primavera
Do chão nada propício à agricultura, levanta-se o clamor por melhores condições de trabalho e moradia no assentamento Primavera. Localizado em Jaraguari, a 30 km de Campo Grande, há quase 20 anos reclamações dos assentados ecoam sem repostas no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Enquanto situações irregulares na distribuição de lotes ganham proporção de escândalo nacional, os trabalhadores não têm nem mesmo o título da terra onde vivem.
Depois de tentativas frustradas de plantar abóbora, batata doce e milho, Paulo Roberto Ferreira de Freitas, 40 anos, teve que apostar na produção leiteira para que o solo “fraco” não deixasse a família sem fonte de renda. Sem assistência técnica, é preciso se valer de improviso. Um motor de Kombi foi adaptado para dar impulso a um triturador. Assim, ele consegue moer a cana que vai alimentar as vacas durante a estiagem.
“A terra é muito fraca. Tem que gastar muito com adubo. A terra não aguenta”, afirma Paulo. Ele conta que já chegou a gastar mais de R$ 3 mil em adubo, mas nem assim teve sucesso na produção. Ao lado do lote, verdeja uma plantação de soja. Mas, segundo o assentado, o cultivo na grande área particular vizinha só é possível com alto investimento em correção do solo e defensivos agrícolas.
No quesito renda, a ajuda só veio com o projeto “Leite Forte”, realizado pela Agraer (Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural). Antes, o litro do leite era vendido a míseros R$ 0,35. Valor que subiu para R$ 0,93 com o programa, cujas placas estão nas porteiras de boa parte dos 71 lotes do assentamento.
Parte da produção também é destinada à venda de queijos. A irrigação também veio para auxiliar no manejo da propriedade. Já poço artesiano e trator só existem porque foram pagos do próprio bolso.
Paulo é filho caçula de Edite Ferreira de Freitas, dona do lote em que vive parte da família. Uma fortaleza de 82 anos, ela conta que sempre teve a vida atrelada à terra. Na juventude, viu o pouco que tinha ser levado por “grileiros” no Paraná. Depois, teve tanta pena do marido que perambulava atrás de um pedaço de chão que decidiu mandar uma carta para o presidente João Figueiredo. “Disse que tinha oito filhos e mais cinco de criação. E não tinha onde trabalhar”, conta. Datada de 1984, a resposta foi remetida pela superintendência do Incra, orientando sobre o cadastro no órgão.
Depois, morou anos em acampamento à espera de um lote. Hoje, fora da “lida”, mas ativa nas atividades domésticas e nos trabalhos manuais de bordado e crochê, ela reclama do abandono dos assentados. No campo, a boa notícia vem da educação. Orgulhoso, Paulo, que nasceu no tempo em que “criança podia trabalhar”, comemora a entrada do filho Petrick, 17 anos, no curso de Direito. O mais velho cursou engenharia.
Já o abandono se espalha pelas estradas em péssimas condições, na igreja abandonada, no pequeno cômodo em meio ao campo que abrigaria um resfriador de leite. Em geral, os lotes têm entradas simples, mas também há espaço para portão ornamentado.
Lar ameaçado – Depois da demora para conseguir um lote, o casal João e Santina vive a espera por melhores condições de moradia. O Incra chegou a mandar material, mas, por um aparente lapso, faltou o telhado. Santina Dias, 56 anos, conta que a solução foi trazer as telhas romanas de um imóvel velho. A cobertura já não resite à chuva e a infiltração ameaça parte da construção. “A casa tá caindo”, conta o pernambucano João Tomaz da Silva, que contabiliza 87 anos, dois casamentos e 14 filhos.
Donos do lote 71, eles afirmam que o solo é um pouco melhor do que o dos vizinhos. Mas o cultivo depende que a prefeitura de Jaraguari empreste o trator e que os assentados paguem o combustível. Outra dificuldade é que a terra não é gradeada no prazos corretos para a produção. Assim, a maior fonte de renda do casal é a aposentadoria.
Dono de um dos poucos lotes em que se vê plantação, Valdemar Diomedes Feitosa, 57 anos, relata dificuldade. “A ajuda do Incra é muito pouquinha, é mínima”, diz. Ele conta que levanta 2h30 para vender a produção na Ceasa (Central de Abastecimento), em Campo Grande, três vezes por semana.
Levantados do chão - Presidente da Aprap (Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Assentamento Primavera), Everaldo José de Queiroz avalia que o principal problema é a falta do título do lote. “Porque tendo documento, tem como fazer financiamento. Mas aqui a gente é abandonado ”, diz.
Uma das exigências era o georreferenciamento, que foi pago pelos assentados. “O Incra disse que não tinha como fazer georreferenciamento. A gente tirou da boca das crianças, passamos dificuldade”, relata.
Segundo Everaldo, as ex-proprietária da fazenda Primavera ainda cobram R$ 30 milhões na Justiça. Ele conta que somente 28 famílias receberam material para construção de casas e que a última esperança era reforma pelo Minha Casa, Minha Vida rural. “Mas não realizou e acho que nem vai realizar”, diz.
Festival - Mortos, políticos e servidores públicos aparecem em lista da CGU (Controladoria-Geral da União) que aponta irregularidades em 1.994 lotes da reforma agrária em Mato Grosso do Sul.
O levantamento detectou 12 falecidos como beneficiário de lotes, além de nove políticos, 1.391 servidores públicos, 362 beneficiados com renda acima de três salários mínimos, 389 empresários, 25 deficientes físicos e 188 aposentados por invalidez. Em Mato Grosso do Sul, conforme a CGU, são 28.669 assentados.
Em todo Brasil, a auditoria da CGU, a partir de cruzamento de banco de dados, identificou indícios de irregularidades em mais de 76 mil benefícios da reforma agrária. A reportagem não conseguiu contato com a assessoria de imprensa do Incra.
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