“A gente já existia em 1988”, afirmam índios em protesto ao marco temporal
Processo que será votado hoje prevê demarcação apenas das terras de posse de índios e quilombolas até 5 de outubro de 1988
Os índios que bloqueiam pelo menos sete pontos de rodovias federais e estaduais nesta quarta-feira (16) em Mato Grosso do Sul criticam o marco temporal incluído na pauta do STF (Supremo Tribunal Federal). “A gente já existia antes de 1988”, afirmam os líderes dos protestos.
Para os índios, o marco temporal é mais uma medida racista que tenta legitimar o massacre dos povos indígenas e quilombolas e dificultar ao máximo a demarcação de terras historicamente ocupadas por essas comunidades.
Em Mato Grosso do Sul, dezenas de áreas estão em processo de estudo, de identificação e de demarcação. Há pontos de conflito por terra em várias regiões, como Dourados, Caarapó, Antonio João, Sidrolândia, Dois Irmãos do Buriti, Amambai, Coronel Sapucaia e Japorã.
Roraima – O marco temporal surgiu em 2009, durante julgamento pelo STF da demarcação da Terra Indígena Raposa do Sol, em Roraima. Com efeito vinculante sobre decisões futuras relacionadas a áreas indígenas, os ministros do Supremo limitaram as demarcações a terras que estavam de posse das comunidades até 5 de outubro de 1988 – quando a atual Constituição foi promulgada.
Depois o próprio STF reconheceu que a decisão proferida no caso da Raposa Serra do Sol não possuía efeito vinculante, e seus efeitos não poderiam ser estendidos a outros processos de caráter similar.
Em 2010, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil apresentou ao STF a Proposta de Súmula Vinculante nº 49, propondo a adoção da data de promulgação da Constituição de 1988 como marco temporal para comprovação de ocupação indígena e reconhecimento de seus direitos originários.
Bancada ruralista – No dia 20 de julho de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União um parecer da AGU (Advocacia Geral da União) vinculando o processo de demarcação de terras indígenas ao cumprimento das 19 condicionantes definidas no caso da Raposa Serra do Sol.
Movimentos de defesa dos direitos indígenas e quilombolas afirmam que o parecer foi incluído no acordo entre a bancada ruralista e o governo para rejeitar a denúncia contra o presidente Michel Temer por corrupção. Na votação que salvou Temer, no dia 2 deste mês, a bancada ruralista votou em peso a favor do presidente.
Na sessão de hoje, o STF vai julgar três ações sobre terras indígenas –Parque Indígena do Xingu (MT), a Terra Indígena Ventarra (RS) e as terras dos povos Nambikwara e Pareci (RR e MT).
Os ministros poderão utilizar ou não a tese do marco temporal e das 19 condicionantes de 2009 para as decisões. Caso utilizem o marco temporal como referência, a sentença terá consequências nas futuras demarcações e pode até reabrir processos já homologados.
Antropóloga e docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Manuela Carneiro da Cunha, considera o marco temporal incoerente.
“A ideia do marco temporal é absurda porque desconhece toda uma tradição jurídica, inclusive constitucional de 1934 pelo menos, que garante as terras aos índios. Esses direitos preexistem, não tem sentido agora dizer que só quem estava em 1988”, afirmou ela, em debate no dia 8 deste mês, em São Paulo.