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Interior

Expulsão em 1950, asilo no Paraguai e resistência: a saga de Nhanderu Marangatu

A questão se arrasta por décadas e encontrou solução num acordo de R$ 146 milhões

Por Aline dos Santos | 26/09/2024 11:48
Cerimônia de batismo de crianças indígenas. (Foto: Reprodução)
Cerimônia de batismo de crianças indígenas. (Foto: Reprodução)

O laudo antropológico sobre o conflito fundiário em área de 9.317 hectares no município de Antônio João, na fronteira com o Paraguai, mostra uma história de expulsão de indígenas, principalmente na década de 50, asilo dos guaranis e kaiowa em aldeia do lado paraguaio, mortes e uma firme disposição em resistir.

Na tarde de ontem, em audiência no STF (Supremo Tribuna Federal), a questão que se arrasta por 74 anos, encontrou solução num acordo em que a União vai pagar pelas benfeitorias e pela terra nua, essa última uma inovação. A conta será de R$ 146 milhões.

A situação de Nhanderu Marangatu, também citada como Cerro Marangatu, foi mencionada em relatório no ano de 1985, quando o estudo era sobre demarcação de Pirakuá, em Bela Vista, cidade vizinha a Antônio João.

Pirakuá foi reconhecida como área indígena pelo  governo   brasileiro  na  segunda   metade  da  década   de 1980, embora desde muito antes já houvessem relatos e registros da presença indígena no local. O antropólogo Rubem F. Thomaz de Almeida assim descreveu Nhanderu Marangatu.

“Tekoha referido ao Cerro Marangatu. Comunidade de 45 pessoas incrustada entre a população da vila de Campestre, a 11 quilômetros da sede do município de Antônio João. Ocupam perto de 10 ha. Inúmeros intentos realizados desde 1973 para que se mudassem para Pysyry (Paraguay) ou Dourados (Brasil). Recusam-se terminantemente a sair dali onde vivem em permanentes conflitos e rusgas com regionais. Foi aí que morreu assassinado em 25.11.1983 o líder Marçal de Souza. Alegam que não abandonam a região de Cerro Marangatu, e só em suas adjacências aceitariam demarcação de área, o que permitiria que abandonassem a dramática situação vivida em Campestre – o que deve ser realizado pela FUNAI. Este tekoha foi sendo paulatinamente deslocado e empurrado dos lugares que ocupou até que se assentou de forma definitiva onde se encontra”.

Conforme o laudo antropológico, de autoria de Jorge Eremites de Oliveira e Levi Maques Pereira, tekoha pode ser entendido como o lugar (território) onde uma comunidade kaiowa (grupo social composto por diversas parentelas) vive de acordo com sua organização social e seu sistema cultural, isto é, segundo seus usos, costumes e tradições.

Os relatos são de que várias famílias indígenas viviam nas imediações do Rio Estrela até começarem a ser desalojadas por pecuaristas.

Cerro  Marangatu: morro no município de Antônio João. (Foto: Reprodução)
Cerro  Marangatu: morro no município de Antônio João. (Foto: Reprodução)

“A interrupção da posse da terra pelos kaiowa não se deu por livre e espontânea vontade dos índios em deixarem aquela área. Deu-se sim pela pressão para que deixassem o local ou mesmo pela remoção forçada da comunidade indígena pelos primeiros particulares que requereram terra na área periciada, como fica claro no ofício que Agapito de Paula Boeira enviou ao SPI, em 1952 (...). Nele o autor denunciou violências e maus tratos que os índios dessa comunidade estariam sofreram no processo de esbulho da terra que ocupavam. Essas ações datam de período anterior à chegada de muitos dos ocupantes atuais, os quais, pelo que foi possível averiguar, não se envolveram diretamente nas violências e maus tratos ali descritos”, informa o estudo.

O documento detalha que Agapito de Paula Boeira foi um político influente no antigo sul de Mato Grosso. Como militante trabalhista e membro do antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), teve passagem pela Câmara Municipal de Ponta Porã e pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Foi de Agapito o projeto que criou a cidade de Antônio João.

Datada de 1952, a denúncia ao então SPI (Serviço de Proteção aos Índios) relatava que um homem afugentou os indígenas se dizendo dono da área, embora não fosse o proprietário legal. Agapito também conta sobre morte de indígena.

“As razões do crime são assassinadas, digo, são desconhecidas, porém, tudo indica que têm ligações com o proposito deliberado de afastarem definitivamente os índios das terras que ocupam e que querem se apossar indevidamente. Guiado por objetivos da Justiça é que venho trazer ao seu conhecimento esses lamentáveis fatos, os quais não podem ficar sepultados, pois, esses atos criminosos precisam ser punidos e justiçados”, afirma o denunciante.

Denúncia feita em 1952 sobre dispersão de núcleo de indígenas: "Trata-se de uma violência". (Foto: Reprodução)
Denúncia feita em 1952 sobre dispersão de núcleo de indígenas: "Trata-se de uma violência". (Foto: Reprodução)

Ao contrário de outras regiões do sul de MS, onde o conflito fundiário deriva de ocupação das terras para cultivo de erva-mate, numa politica para estimular a migração para o território, numa política de governo que desconsiderava já ter gente por aqui, Nhanderu Marangatu foi cercada pela pecuária.

“A área periciada não apresentava grande concentração de erva-mate e  por isso não  despertou o interesse da atividade extrativa desenvolvida pela Companhia Matte Larangeira, como também  aconteceu  com   outras comunidades que ocupavam certos espaços na serra de Maracaju”.

A expulsão levou os grupos para Pysyry, aldeia no Paraguai. “Na década de 1970, parte da população kaiowa de Ñande Ru Marangatu, outrora conhecida como Cerro Marangatu, vivia em Pysyry porque se viu obrigada a deixar a área em litígio e buscou abrigo entre seus parentes residentes do outro lado do rio Estrela”.

Outro destino era a Vila Campestre, ainda no território de Antônio João. “Neste outro trecho do relatório pode-se constatar, por exemplo, que na década de 1970 muitos kaiowa residentes no distrito de Campestre teriam sido para lá levados, com apoio da Prefeitura Municipal de Antônio João, para que ‘saíssem das terras de Pio Silva’, isto é, da antiga fazenda Fronteira, posteriormente dividida em outras (Fronteira, Cedro e Barra)”.

Placa indicativa das fazendas Fronteira, Cedro e Barra, em Antônio João. (Foto: Arquivo/Marcos Ermínio)
Placa indicativa das fazendas Fronteira, Cedro e Barra, em Antônio João. (Foto: Arquivo/Marcos Ermínio)

“Não é dinheiro de gravata não” - No levantamento, realizado em 2007, Pio Silva foi ouvido e contou sua trajetória, onde reforçou ser um homem trabalhador.

“Meu dinheiro não é dinheiro de gravata não; é dinheiro suado!”, disse na manhã de 31 de janeiro de 2007, quando os peritos o entrevistaram em sua residência, no centro da cidade de Antônio João. Antes de ser proprietário rural, foi peão e administrador de fazendas de terceiros.

“O relato de sua história de vida reflete, como diriam os estadunidenses, um legítimo self made man, ou seja, um homem que construiu sua realização econômica com seu próprio esforço, trabalho e criatividade”.

Ele disse que, ao contrário do divulgado muitas vezes pela imprensa, são reconhecidos na região como pessoas de bem, compondo famílias tradicionais. A expectativa era de indenização, pois as terras foram vendidas e tituladas.

História no processo - Para os fazendeiros, a posse de não indígenas na região remonta a 1863, quando a Fazenda São Rafael do Estrela foi adquirida por dona Rafaela Lopes, do governo da República do Paraguai. A área passou a pertencer ao território brasileiro por força do Tratado de Paz firmado em 1870. Os títulos de domínio teriam sido expedidos, posteriormente, pelo governo do Mato Grosso e ratificados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), com anuência prévia do Conselho de Defesa Nacional.

“Aduzem que eventuais posses de indígenas sobre a área em conflito são resultado de invasões ocorridas a partir de 21 de dezembro de 1998, segundo comprovam as cópias de boletins de ocorrência com relatos de invasões, agressões a funcionários das fazendas, ataques a animais, depredações e ameaças”, informa os autos.

A AGU (Advocacia-Geral da União) sustenta que não há como comprovar que a posse dos proprietários remonta a 1863.  “As provas, ao contrário, indicariam que as aquisições remontam no máximo a 1938, quando foram concedidas pelo Estado do Mato Grosso, o que comprovaria a condição de terras devolutas”.

Repercussão – O presidente da Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul), Marcelo Betoni, chamou de “momento histórico” o acordo firmado.

O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) aguarda a homologação do documento. “Nesse período, vários indígenas perderam a vida buscando recuperar seu território tradicional. Nenhum caso foi ignorado! Sangue indígena, nenhuma gota mais. Aguardamos agora a publicação a homologação da resolução encontrada na tarde de ontem para que com isso, fique clarividente a salvaguarda de todos os direitos indígenas conforme prevê a Constituição Federal de 1988”, afirma o advogado Anderson Santos.

Protesto de indígenas durante audiência no Supremo Tribunal Federal. (Foto: Ascom Aty Guasu)
Protesto de indígenas durante audiência no Supremo Tribunal Federal. (Foto: Ascom Aty Guasu)

Quem paga? - O acordo prevê o pagamento da União aos proprietários no valor de R$ 27,8 milhões a título das benfeitorias apontadas em avaliação individualizada feita pela Funai em 2005, corrigidas pela inflação e a Taxa Selic. O valor será viabilizado por meio de crédito suplementar.

Os proprietários também devem receber indenização, pela União, no valor de R$ 102 milhões pela terra nua. Mato Grosso do Sul deverá ainda efetuar, em depósito judicial, o montante de R$ 16 milhões, também a ser pagos aos proprietários.

Contudo, o acordo determina que “eventual direito de regresso pela União contra o Estado do Mato Grosso do Sul será discutido em conciliação interfederativa a ser instaurada no prazo de até 30 dias, contados da homologação”. Ou seja, o governo federal pode cobrar de MS.

“Esse acordo é muito importante. Abre a oportunidade para outros semelhantes, pacificando essa questão conflituosa que perdura por décadas.  Garante aquilo que é justo e necessário: indenização não só das benfeitorias, mas também do valor do imóvel ou da terra nua. Se bem que, por vedação constitucional, essa conta maior poderá ficar para o Estado de Mato Grosso do Sul, como consta de item do acordo”, afirma o advogado André Borges.

A reportagem solicitou informações sobre o acordo para a PGE (Procuradoria-Geral do Estado) e aguarda retorno. O governo do Estado informou que a composição será tema de entrevista coletiva amanhã. Ao Campo Grande News, o governador Eduardo Riedel festejou o que ele chamou de “acordo histórico. Sempre disse que iria buscar uma solução junto com todas as partes interessadas”, afirmou.

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