Como construir um inimigo e a Nau dos Loucos
O debate inaugural da campanha eleitoral é se um dos candidatos é louco. A internet está cheia de acusações de uma loucura religiosa-política. Essa é uma das formas solenes de construir um inimigo. Louco é o estranho, o bárbaro, o herege, o judeu, o negro, o cigano, o fedido.... Refletindo um pouco, louco é um país tão grande que não tem inimigos. Vejam o que aconteceu nos Estados Unidos quando o Império do Mal desapareceu e o grande inimigo soviético dissolveu-se. Corriam o risco de ver desmoronar sua identidade e unidade, até que Bin Laden apareceu.
O inimigo não existe, é preciso construí-lo.
Ter um inimigo é importante não somente para definir a nossa identidade, mas também para encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores e mostrar, no confronto, o nosso próprio valor. Portanto, quando o inimigo não existe, é preciso construí-lo. Há inúmeros grupos na sociedade brasileira que só aceita os seus membros. Todos os demais , são inimigos.
Inusitado, o fedido é inimigo.
O Cascão esteve em voga muito antes dos quadrinhos de Mauricio de Souza. Fétido. O inimigo sempre fede. Um francês escreveu um volume demonstrando que o alemão médio produz mais matéria fecal do que um francês, e de odor mais desagradável. Fedia o muçulmano, para os europeus. Fediam os austríacos para os italianos. Não pode deixar de feder o cigano, "visto que se alimenta de carniça", como ensinava Lombroso. E fede a inimiga de James Bond em "Moscou contra 007", a inimiga não é apenas russa e soviética, mas fede e ainda por cima é lésbica.
No início era a lepra.
Se o ex-prefeito, agora candidato, fosse louco (é apenas uma construção do inimigo), não estaria sozinho. Há louco nos primórdios da humanidade, na Mesopotâmia, na Grécia, no Egito, em Roma, entre nossos tupiniquins, entre os guaranis e astecas. Mas ninguém com eles se importava. Na maioria das sociedades, o que contava era a lepra. Que foi substituída pelas doenças venéreas Até que uma Nau de Loucos apareceu.
Nau dos insensatos, quando a sociedade percebeu o louco.
A medicina demorou a intervir em um fenômeno que estava presente em todos os cantos do mundo. Esse fenômeno é a loucura. Um objeto novo acabava de aparecer na Renascença. E nela ocupará lugar privilegiado. É a Nau dos Loucos. Estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e da Bélgica flamenga. Ela teve existência real Eram barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham uma existência errante. As cidades escoravam-nos de seus muros. Deixavam que corressem - "feito loucos" - pelos campos distantes. Ou eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Até que entra a moda de entregá-los a marinheiros e a barqueiros. Navegar é preciso, "enlouquecer" por uma candidatura, não é preciso. Esperteza e atuação teatral não são sintomas de loucura.