Diferenças entre EUA e Brasil: posse da terra e democracia
Em 1670, após uma angustiante viagem, um jovem casal inglês, sem um centavo no bolso, desceu do primeiro navio a aportar na costa da Carolina (EUA). Eles haviam assinado um contrato de servidão. Entre 65% e 80% de todos os britânicos que chegaram à baía de Chesapeake durante o século XVII o fizeram nessas condições. Aquilo de forma alguma era excepcional. Durante todo o período colonial, três quartos de todos os imigrantes europeus à América britânica chegaram sob o regime de servidão por contratos.
Essa era uma migração muito diferente daquela vivenciada pelos portugueses. Eles não chegaram a Porto Seguro, São Vicente e Pernambuco pensando em trabalhar. Muito pelo contrário. Desejavam uma vida distante da dura faina nas pobres terras portuguesas a que tinham sido submetidos. Desejavam que outros trabalhassem para sustentá-los.
Também é diferente a chegada de espanhóis ao Perú. Encontraram, literalmente, montanhas de prata. Tudo que parecia haver na costa da Carolina e na brasileira era um depósito de troncos de árvores. Elas não eram nenhum El Dorado. Ao contrário, os colonos dos Estados Unidos tiveram de plantar milho para comer e tabaco para comercializar. Seu primeiro intento de usar a força do índio tinha terminado em atrocidade. Na costa brasileira, as plantações eram de cana-de-açúcar para girar os moinhos, trabalho considerado o mais terrível do mundo daquela época, mas, ao contrário dos ingleses, a mão-de-obra era do índio escravizado.
Por muito anos, as colônias norte-americanas permaneceram uma imensa colcha de retalhos de propriedades rurais e povoados, com algumas poucas cidades e nenhuma metrópole. Por lá, os nativos, embora menos numerosos que no Brasil, não foram subjugados facilmente.
Em 1670, todos pensavam que a América dos Pizarros, "proprietários" do Perú, era a terra da prosperidade. Também pensavam que o Brasil tinha futuro pela fertilidade de suas terras e docilidade indígena. Mas a terra norte-americana tinha um futuro obscuro. Os ingleses que para lá não foram a apelidaram de "Ruritânia", terra de fazendeiros atrasados.
O paradoxo da abundância
Mas não pensem que essas diferenças eram propositais, emanadas de genialidades diferentes, de povos com capacidades intelectuais diferentes. Se os ingleses tivessem chegado ao Brasil ou ao Perú nada indica que teríamos uma história diferente. Nada nos permite concluir que as colônias britânicas teriam tornado o que se tornaram se tivessem sido estabelecidas na América do Sul e não na América do Norte.
O "x" da questão é a importância relativa no processo histórico, por um lado da disponibilidade de riquezas e de mão-de-obra fácil, e, por outro, dos planos institucionais que os ingleses levavam consigo. Se os ingleses tivessem aportado no Perú, o resultado teria sido quase o mesmo, teriam sido igualmente tentados a pilhar os incas e propensos a sucumbir ao paradoxo da abundância de ouro e prata. Se no Brasil chegassem, usurpariam a força do índio. Mas há mais do que abundância, há democracia sendo instaurada na Inglaterra.
A força da propriedade da terra para a construção de riquezas e os tributos vigiados
A Inglaterra já era diferente de Portugal e Espanha em 1670. Os índices de violência vinham decaindo constantemente desde os anos 1300. Começando por volta de 1640, a taxa de natalidade inglesa cresceu gradativamente de cerca de 26 por 1000 para um pico de 40 por 1000 no início do século XIX. Esses são índices que somente agora começam a ser alcançados na América do Sul, passados 400 anos. E têm mais. Os salários subiam na Inglaterra. Os aluguéis baixavam. E a alfabetização crescia notadamente. Outra mudança crucial foi a liberdade de migração para ingleses. Já nos anos 1640, a saída de ingleses excedeu os 100 mil e continuou com números elevados até 1790. Era uma mão-de-obra muito produtiva.
Os ingleses que saiam de sua pátria levavam pouca coisa consigo. Até mesmo o preço da passagem foi pago por um empréstimo a ser ressarcido com seu trabalho futuro. Mas eles carregavam um conjunto de ideias que tiveram profundas implicações para o futuro norte-americano. A primeira ideia era a noção de direito de propriedade que vinha se formando nos tribunais de direito comum e nos tribunais de equidade. Era uma ideia antiga e forte. A outra ideia fundamental era de que um rei déspota não podia cobrar tributos a sua vontade, era necessária a aprovação do parlamento. Já em 1628, na "Petição de Direitos", os críticos parlamentares exigiram que "nenhum homem, de agora em diante, seja compelido a fazer qualquer doação, empréstimo ou caridade nem a pagar imposto ou cobrança similar, sem a devida aprovação do parlamento". Haviam colocado um freio nos abusos do rei.
Quando o capitão do primeiro navio a chegar na Carolina colocou os pés na praia, trouxe consigo um modelo institucional em cujo cerne estava a questão das terras. Os colonos sabiamente especificaram em sua constituição que três quintos da terra seriam divididos "entre o povo". Cada homem ganhou, em média, 100 acres para plantar, " para eles e seus herdeiros para sempre". Na América do Norte qualquer um tinha a chance de conseguir um pedaço de terra. Essa foi a essência do sistema de "headright", também introduzido na Vírginia, em Maryland, em Nova Jersey e na Pensilvânia. Era um plantio ativo e altamente produtivo. Esse plantio não só era um forma economicamente superior de capitalismo como também legitimava a expropriação da terra dos indígenas. A constituição era uma carta de direitos em favor da expropriação.
Cada transação de terra era registrada nos EUA e na Inglaterra. Havia força. Havia respeito à propriedade. E cada proprietário de terra tinha direito a escolher seus comandantes. A democracia fazia-se forte com a posse da terra e com os tributos cerceados. A história deles que chegou ao Brasil não conta, mas a essência da guerra de independência está na questão da terra e não dos tributos. O rei havia assegurado aos indígenas pela proclamação real de 1763 que enormes parcelas de terra pertenceriam aos índios. Washington foi um dos que declarou a guerra. Em 1768, Washington tinha 45 mil acres de terra na Virgínia, todas decorrentes da expulsão indígena. Seu testamento legou aos herdeiros 52.194 acres.
A distribuição de índios e não de terras na América do Sul
Nas colônias portuguesa e espanholas, a terra fora alocada de maneira diametralmente oposta. No início, não foi a terra concedida a portugueses e espanhóis , o que lhes importava era a mão-de-obra dos milhares de índios. Ao contrário das colônias britânicas, onde os acres foram amplamente distribuídos, na América do Sul foi o direito de explorar os povos indígenas que foi concedido a uma diminuta elite. E mais, as terras concedidas não eram passadas aos herdeiros perpetuamente, continuavam sendo dos reis e nem sequer deveriam ser cercadas. Só muito lentamente se tornaram fazendas hereditárias. Mas o resultado final foi que os conquistadores se tornaram os ricos ociosos da América do Sul.
Além disso, os reis de Portugal e Espanha restringiram a emigração, seus súditos na América do Sul tinham se tornado ricos e perigosos por um lado, de outro, miseráveis e dispostos a correr qualquer risco para derrubar os chefetes de plantão. Esse é o cerne do caudilhismo e dos golpes de estado tão comuns na América do Sul.
Na América do Sul, os índios trabalharam a terra. Na América do Norte, eles a perderam. O Washington da América do Sul foi Simón Bolívar, filho de um rico plantador de cacau, proprietário de 120 mil acres. Ainda que educado na Europa, jamais passou de um déspota esclarecido que nunca esteve disposto a resolver a questão da terra e muito menos implantar um arremedo de democracia que fosse. Bolívar desejava a libertação da América do Sul para que ele comandasse o continente. Ele deu uma resposta caótica ao vácuo repentino de poder após o ataque de Napoleão à Espanha. O Brasil não teve um Washington e nem um Bolívar. A questão da terra ainda está por ser resolvida. E ela dá o tom para a questão do direito à propriedade em geral. Que está, historicamente, vinculada à questão da democracia.
A independência de Portugal e da Espanha deixou a América do Sul com um duradouro legado de conflito, pobreza e desigualdade.