Maldição do segundo: Dalí eclipsado por Picasso
"Picasso é espanhol. Eu também. Picasso é um gênio. Eu também". Nesse fragmento do célebre discurso sobre Pablo Picasso pronunciado por Salvador Dalí, em 1951, está a essência das relações entre esses dois titãs da arte contemporânea. Dalí, 20 anos mais novo, sentia por Picasso uma admiração de aluno que em alguns momentos de sua vida se transformou em inveja reverente, em desejo obsessivo de estar à altura do mestre. Depois da guerra civil espanhola, além da inevitável rivalidade artística, começou a separá-los também uma trincheira ideológica. Picasso foi, durante um tempo, um comunista declarado. Dalí era um reacionário convicto. Os dois artistas mais famosos de seu tempo seguiram, todavia, trocando correspondência e dialogando à distância através da pintura, como nas variações sobre a obra de Velázquez em que ambos embarcaram nos finais de 1950.
Obelix eclipsado por Asterix.
Par de fato desde que René Goscinny e Albert Uderzo os criaram em 1959, presos em eterna juventude em um quadrinho que não vê o tempo passar, os dois franceses bigodudos têm uma lealdade tão irredutível como a aldeia em que vivem, que resiste agora e sempre ao invasor. Asterix vem a ser um herói sem grandes atributos, um papel em branco no qual os leitores podem projetar, sem interferências, sua própria personalidade. Está muito além da arrogância e vaidade que são muito francesas. Obelix, ao contrário, é glutão, briguento, afetuoso, pueril, leal, caprichoso... Um ser humano complexo, poliédrico. Uma espécie de tonto útil, tratado com condescendência, um simples apêndice de Asterix. Seu status de pária integrado é tão evidente que está excluído do ritual de reafirmação coletivo que é tomar a poção mágica. Dadas as circunstâncias, não é estranho que o ressentimento de Obelix, o homem eclipsado, aflore com contundência em algumas histórias.
Donovan eclipsado por Bob Dylan.
É um dos momentos mais divertidos e cruéis do documentário "Don´t look back", crônica audiovisual do giro britânico de Bob Dylan, de 1965. O cantor escocês Donovan Phillips Leitch aparece com sua guitarra no hotel de Londres em que está hospedado Dylan. Toca uma de suas canções - "To sing for you" - e recebe o menosprezo arrogante de seu ídolo, que lhe arrebata o instrumento entre risos para tocar uma estrofe de "It´s all over know baby blue" e deixar assim muito clara a distância entre um gênio e um simples principiante com pretensões. Donovan, que tinha sido apelidado pela imprensa de "Dylan britânico", será perseguido por essa imagem. Pouco importa que Donovan seja um artista de sólida trajetória, escreveu verdadeiros hinos como "Catch the Wind" e "Universal soldiers" e obras mestras dos hippies como "Hurdy gurdy man" ou "Atlantis". Foi castigado com dureza por ser o segundo.
Salieri eclipsado por Mozart.
Desde "Mozart e Salieri", ópera de Nikolái Rimski-Korsakov, estreada em 1898, se afirmava que Antônio Salieri havia envenenado a seu colega Wolfgang Amadeus Mozart corroído pela inveja que lhe causava o grandioso talento. O dramaturgo inglês Peter Shaffer aprofundo a história dessa rivalidade malsã entre dois músicos da era barroca com sua obra "Amadeus", adaptada ao cinema logo depois por Milos Forman. Segundo a apaixonante, mas não de todo fiável, versão de Shaffer, Salieri foi compositor que conquistou êxito, mas tinha um talento menor que o de Mozart. Por isso dedicou-se a sabotar a carreira de seu rival na corte vienense e acabou assassinando-o. Mas há evidências históricas de que Salieri nada teve a ver com a morte de Mozart e sim que foi seu amigo, mentor e colaborador apesar de alguns desencontros pontuais.
Pierre Curie eclipsado por sua esposa Marie Curie.
O nome de Pierre Curie é uma instituição no campo das pesquisas. Mas o de sua esposa, Marie, o supera. Os fatos: juntos ganharam o Prêmio Nobel de Física de 1903 por suas investigações acerca da radioatividade, mas ela voltou a ganhar outro Nobel, dessa vez em Química, em 1911. Não só é a única mulher que ganhou dois Nobel, é também a única pessoa que o fez em duas categorias diferentes.
Niels Bohr eclipsado por Albert Einstein.
O dinamarquês Niels Bohr não foi capaz de nocautear Albert Einstein no grande combate intelectual do século XX. E Bohr golpeava com a contundência e o rigor da mecânica quântica. Einstein resistiu durante década - até meados dos anos 1930 - a algumas das conclusões dessa que era então uma novíssima e prometedora disciplina científica. E o fez aplicando a intuição e o pensamento lateral, duas armas semelhantes que usava Muhammad Ali. O físico alemão chegou a estar contra as cordas, como ocorreu na célebre Conferência de Solvay, de 1927, mas o sensato e equânime Bohr acabou reconhecendo que a luta que propunha Einstein era um poderoso estímulo. O fazia pensar mais e melhor, em ultima instância, propunha novos problemas e chegava a melhores conclusões. A perspectiva atual é de que Bohr estava certo em grande parte das questões que foram objeto de debates entre eles. Mas isso não impede que Bohr siga sendo uma figura relativamente obscura - apesar do que a série "The Big Bang Theory" fez para popularizá-lo - e, que, do outro lado, consideremos Einstein uma personalidade chave do século XX e um dos maiores gênios da ciência.