Um nu feminino pode levar um homem ao suicídio?
A ousadia no mundo das artes não começou neste século. Pelo contrário, um dos marcos ultrapassagem da fronteira daquilo que era tido como de "boa moral e bons costumes" é a Afrodite de Cnidos, uma estátua feita pelo grego Praxíteles, em torno de 300 a.C. . Mas a total nudez é só uma das inquietações que existiram sobre essa estátua.
Os escritores gregos e romanos entendiam que a forma culminante da arte era conseguir fazer uma ilusão perfeita da realidade. Ou dito de outro modo: a conquista artística mais elevada consistia em eliminar toda a diferença visível entre a imagem e seu protótipo. Há uma historieta que faz referência a dois pintores rivais do século V a.C.. Zeuxis e Parrasio, competiram para saber qual dos dois era mais hábil. Zeuxis pintou um cacho de uvas com tamanha realidade que os pássaros voaram para bicá-lo. Aquela ilusão prometia conquistar a vitória. Todavia, Parrasio pintou uma cortina, e Zeuxis, encorajado pela eminente vitória, pediu que abrissem a cortina para mostrar a pintura que havia por trás dela. Zeuxis, em seguida, percebeu o erro e reconheceu a vitória de Parrasio com as seguinte palavras: "Eu enganei os pássaros, mas Parrasio me enganou".
O nu feminino que escandalizou e conquistou o mundo.
Não sobrou rastro dessas duas pinturas. Mas temos o testemunho de uma estátua de mármore que é objeto de uma história similar... mas muito mais inquietante. Se trata de uma escultura de Praxíteles, esculpida em torno de 330 a.C., uma obra hoje conhecida como Afrodite de Cnido, em alusão à cidade grega que hoje fica na Turquia. Na Antiguidade foi considerada uma marco da arte. Era a primeira estátua de uma figura feminina nua em tamanho natural, tecnicamente, nesse caso, uma deusa com aparência humana. Existiam muitas estátuas de mulheres, todas completamente vestidas. Tão vestidas quanto as gregas de carne e osso, que inclusive usavam véus para cobrir os cabelos e a face.
A estátua original, feita por Praxíteles, se perdeu há muito tempo. Foi levada à Constantinopla, em V d.C. e o fogo a devorou.Mas era tão famosa que fizeram dezenas de cópias em seu tempo. Havia muitas formas de suas cópias: em tamanho natural, miniaturas, moedas... algumas dessas cópias foram conservadas. Pelo menos uma está no Louvre e outra no Museu Nacional de Roma.
Uma revolução na arte grega.
Na atualidade é difícil enxergar nessa estátua a mudança que proporcionou. Aparentemente, não representa nenhuma ousadia ou perigo. Mas seus espectadores, do século IV a.C., não estavam habituados à exibição pública da carne feminina. A expressão "primeiro nu feminino" diz muito pouco dos acontecimentos. De fato, o experimento de Praxíteles destruiu as convenções sobre a arte que existiam. O escândalo foi gigantesco. Não é de estranhar que a cidade grega de Cos, hoje uma ilha em frente da costa turca, o primeiro cliente a quem Praxíteles ofereceu sua estátua, disse: "Não, muito obrigado", e escolheu outra estátua vestida, isenta de riscos.
O debate entre o celibatário, o heterossexual e o homossexual.
Não obstante, a nudez só era um parte da questão. Aquela Afrodite era decididamente diferente desde um ponto de vista erótico. Só as mãos são um sinal revelador. Estão tapando, recatadamente, suas partes? Por acaso apontam para a parte que o espectador deseja ver acima de tudo? Ou são simplesmente uma provocação? Qualquer que seja a resposta, Praxíteles estabeleceu essa tensa relação entre essa estátua feminina e um espectador masculino, que nunca mais se desvinculou da história da arte.
Em um curioso ensaio de 300 d.C., o autor anônimo conta a discussão entre três homens - um celibatário, um heterossexual e um homossexual -. Eles observam a estátua da Afrodite de Cnido e debatem sobre qual forma de sexo é melhor. O heterossexual olha com lascívia o rosto e a parte frontal. O homem que prefere o amor de outros homens, perscruta a parte traseira. Ambos percebem uma pequena marca no mármore, na parte superior das nádegas.
Na qualidade de conhecedor de arte, o celibatário, começa a celebrar as virtudes de Praxíteles, que conseguiu ocultar o que parece uma imperfeição do mármore em um lugar tão discreto, mas uma mulher encarregada da custódia da estátua interrompe a conversa para assinalar que por trás daquela marca, havia algo sinistro.Explica que, uma vez, um homem perdidamente enamorado pela estátua, conseguiu permanecer toda a noite abraçado nela e que a manchinha é o único resto de sua luxúria. O hétero e o homossexual declaram, com júbilo, que aquilo dá razão a suas argumentações. Um assinala que um homem é capaz de se enamorar de uma mulher ainda que ela seja de pedra. O outro diz que a localização da mancha, mostra que fora possuída por trás, como se fosse um homem. Mas a mulher não se interessa pelos argumentos. Conta que a história é trágica: o homem, enlouquecido, se lançou em um precipício.
Incômodos e mais incômodos.
Essa história contém vários incômodos. É uma recordação do quanto foi inquietante a presença do nu feminino na história da arte. Também é inquietante porque discute a eliminação dos limites entre a pedra e a mulher de carne e osso. E o perigo que resultou no suicídio do homem. O perigo de uma paixão tão intensa quanto louca.