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Economia

“Não existe reforma da previdência sem reforma tributária”, diz juiz federal

Especialista em previdência defende idade mínima para aposentadoria, mas teme que mudanças na reforma do governo “sejam radicais”

Izabela Sanchez | 14/05/2019 14:45
Victor Souza é juiz federal de vara previdenciária no Rio de Janeiro (Foto: Marina Pacheco)
Victor Souza é juiz federal de vara previdenciária no Rio de Janeiro (Foto: Marina Pacheco)

Para Victor Souza, juiz federal do TRF (Tribunal Regional Federal) da 2ª região no Rio de Janeiro, a previdência social não é só um assunto de praxe, rotina de trabalho. Juiz da vara de previdência, ele define o assunto como “paixão”, tema de pesquisa e, também, agora, de preocupação.

Em visita a Mato Grosso do Sul, Victor ministrou um curso na OAB-MS (Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Mato Grosso do Sul) em Dourados, a 233 km de Campo Grande e participaria de uma audiência pública na Câmara Municipal de Campo Grande sobre a reforma da previdência – espinha dorsal do projeto econômico do governo Bolsonaro –, audiência que foi adiada.

Em entrevista ao Campo Grande News, o juiz explicou a necessidade, hoje, de que o regime previdenciário estabeleça uma idade mínima para aposentadoria. Única alteração, segundo ele, que deveria ser realizada em um regime previdenciário que ele chama de “belíssimo”. A idade mínima proposta pelo governo – 65 para homens e 62 para mulheres – ele considera um exagero e teme que as demais mudanças do pacote da reforma “sejam radicais” para a realidade brasileira.

“No regime geral não tem idade mínima, e nos regimes próprios isso já existe. Essa é uma situação que realmente demanda algum ajuste. A grande maioria dos países já possui uma idade mínima. O problema é que a gente vê nessa reforma uma omissão política muito maior do que talvez fosse demandado de ajustes. A gente percebe uma ambição no sentido de modificar, de desestruturar os institutos de proteção social que nos preocupa bastante”, diz.

Ele sugere, como idade mínima para aposentadoria no Brasil, 62 anos para homens e 57 para mulheres. O fim das aposentadorias especiais e mudanças no tempo de transição são pontos da reforma que, afirma, serão prejudiciais ao país.

“Por exemplo, você tem no texto da reforma, algo que me parece muito relevante, o fim da conversão de tempo especial. Quando você trabalha em condições nocivas à sua saúde ou perigosas, isso hoje te permite uma contagem de tempo diferenciada, por medida de justiça social e de igualdade real. Eu não posso tratar um trabalhador que trabalha no ar condicionado, numa situação sem risco algum, com o mesmo tempo de serviço, de um trabalhador de uma metalúrgica, submetido a altíssimas temperaturas ou um vigilante submetido a periculosidade intensa e permanente”, afirma.

Esses pontos, defende, são pouco discutidos. “Eu acho que a gente pode mudar a previdência, mas com cuidado de não inovar radicalmente, com o cuidado de não impedir o acesso à previdência. Os riscos sociais vão continuar acontecendo e a gente está criando uma ideia desagregadora. A capitalização é extremamente desagregador. Tem que ter um histórico de estímulo à previdência privada primeiro, para depois aquilo virar realidade”, comenta.

O juiz defende que o país estabeleça uma idade mínima para aposentadoria (Foto: Marina Pacheco)
O juiz defende que o país estabeleça uma idade mínima para aposentadoria (Foto: Marina Pacheco)

Regime de capitalização – O governo decidiu adiar, para outro momento, o envio de um projeto que estabeleça um regime de capitalização na previdência, ou seja, fundos privados. Nesse regime, os trabalhadores viram clientes de fundos previdenciários, que são pagos de acordo com as contribuições feitas no passado pelos próprios trabalhadores.

O ponto, apesar de ter ficado de fora da reforma, é a principal defesa do ministro da economia, o “posto Ipiranga” de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes. Guedes é herdeiro teórico da Escola de Chicago. Os “Chicago boys”, como são chamados, são economistas adeptos do liberalismo. O Chile, por exemplo, foi um dos países que recebeu mudanças na previdência instituindo fundos privados.

Para o juiz, esse modelo é ineficaz e exigiria investimento público nas empresas superior à economia prevista na previdência.

“Eu vou romper com essa estrutura agregatória e vou criar uma de sustento da previdência só pelo próprio empregado. Isso além de ser antissocial, tem uma questão econômica grave. Porque a previdência privada que vai receber esses trabalhadores para pagar a aposentadoria, ela vai precisar de um aporte financeiro que estima-se ser muito maior que R$ 1 trilhão, isso prevendo com a venda de empresas, privatização e direitos e bens públicos. Isso não tem como funcionar. Eles nem tem ideia dessa conta”, defende.

Um rombo que vem da crise – Este ano, o governo estima que o déficit na previdência alcance os R$ 309 bilhões. Victor argumenta que o déficit, além de não ser detalhado e esclarecido, só aumentou porque o Brasil enfrenta “uma grave recessão econômica”. "A gente não tem histórico de poupança, a gente é um país pobre, a verdade é essa. A gente é um país em desenvolvimento, mas ainda com perfil muito pobre, com uma recessão terrível. Essa questão da recessão é pouco abordada pelo governo”, conta.

“Por que as contas previdência não estão legais? Há cerca de 5 anos as contas do regime geral estavam superavitárias porque a economia estava funcionando. Na medida que há muitas transições econômicas em curso, você tem uma pujança econômica que a cada transação, a cada compra e venda, a cada nota fiscal você tem um imposto sendo pago, você tem uma contribuição para sustento da seguridade social sendo paga. Isso não é debatido com detalhes nessa reforma. Porque se você melhora a economia e ela volta a rodar eu vou necessariamente ter mais dinheiro entrando no caixa da previdência”, diz.

O juiz afirma que se tem “um conceito de déficit em aberto”. “Esse déficit nunca é avaliado historicamente. Até 2004, por exemplo, a administração pública não recolhida contribuições como empregadora dos seus servidores, só havia contribuição do servidor, e numa estrutura de repartição isso está errado”.

"A gente é um país em desenvolvimento, mas ainda com perfil muito pobre, com uma recessão terrível", diz o juiz (Foto: Marina Pacheco)
"A gente é um país em desenvolvimento, mas ainda com perfil muito pobre, com uma recessão terrível", diz o juiz (Foto: Marina Pacheco)
“A gente não discute, por exemplo, o aspecto tributário da previdência. Porque na verdade eu não tenho só que cortar os gastos, eu tenho que aperfeiçoar arrecadação", comenta (Foto: Marina Pacheco)
“A gente não discute, por exemplo, o aspecto tributário da previdência. Porque na verdade eu não tenho só que cortar os gastos, eu tenho que aperfeiçoar arrecadação", comenta (Foto: Marina Pacheco)

Reforma tributária – Victor faz parte da direção científica do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário), é mestre em justiça administrativa e em controle da administração pública pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e doutor em sociologia e direito com o tema da proteção da confiança. Para o especialista, não existe alteração previdenciária que não seja ligada a mudanças na forma como o poder público arrecada, ou seja, os tributos.

“A gente não discute, por exemplo, o aspecto tributário da previdência. Porque na verdade eu não tenho só que cortar os gastos, eu tenho que aperfeiçoar arrecadação. Isso não está sendo debatido na PEC 06/2019. Então como eu vou repentinamente modificar o sistema? Alguns setores da economia precisam pagar mais tributo, precisam participar mais ativamente. Eu não consigo me conformar a gente debater estímulo à previdência privada e ver essas notícias de lucro bilionários de uma atividade que não se submete a risco nenhum praticamente que é a atividade bancária. Por que não podem pagar mais de imposto e contribuição social de previdência? Isso é igualdade real, é tratar desigualmente os desiguais”, afirma.

Mudanças – Entre as mudanças estabelecidas pelo governo para apreciação do Congresso, estão as porcentagens de recebimento dos valores e tempo de contribuição que, para o juiz, causam sérias mudanças no bem estar social do país. “Além de implantar uma idade mínima no lugar do fator previdenciário, reduz o percentual das aposentadorias drasticamente. Isso é muito terrível. Da pra gente entender com exemplos bem simples. A conta agora vai ser a seguinte: você vai se aposentar e vai ter o direito a 60% da sua média. Com 20 anos de contribuição, eu tenho 100% dos salários, não vou desprezar os 20% menores, isso já vai puxar pra baixo, e eu não vou mais usar sua média inteira, eu vou te dar só 60%”, diz.

“Querem 60% [da aposentadoria] com 20 anos de trabalho e só 100% da média com 40 anos de trabalho. Isso é muito duro. E detalhe, isso vai ser aplicado imediatamente, não vai ter regra de transição para forma de cálculo. Ou seja, a aposentadoria concedida um dia após a reforma já vai com a forma de cálculo nova que é terrível”, argumenta.

Mudança nem chegou, mas já é sentida – O governo de Michel Temer aprovou a emenda 95, que estabeleceu um teto de gastos públicos por 20 anos no Brasil. O juiz afirma que o projeto já traz consequências à previdência. O INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), diz, está esvaziado e sem funcionários. Isso faz com que os processos de concessão de aposentadorias e pensões levem muito tempo para sair e sejam levados à justiça.

“Com certeza a gente vai ter muito processo. A gente já está tendo um aumento drástico de distribuição de processos por conta da emenda 95, como o INSS está travando, literalmente está travando, não é nem qualidade de trabalho, é pouco servidor. O INSS está buscando solução em meios novos, INSS digital que eles chamam, algumas concessões automáticas de aposentadoria que estamos pretendendo fazer, mas essas concessões saem cheias de erros, então está tendo necessidade de processos para corrigir esses erros, processos para concessão de benefícios, concessão simples, isso está havendo demais”, conta.

Além disso, opina, o anúncio das mudanças na previdência já fazem com que muitas pessoas deixem de contribuir com o regime público.

“A reforma não foi aprovada, mas já tem efeitos maléficos vivenciados. Os trabalhadores individuais, autônomos, profissionais liberais, estão parando de recolher, porque qual a perspectiva desse pessoal de se aposentar, de ter uma previdência social? Nem foi aprovada a reforma e as instituições financeiras de previdência aberta já estão auferindo esse lucro, o lucro de trazer para sua cartela de clientes pessoas que poderiam estar colaborando para diminuir o déficit das contas previdenciárias, recolhendo para o regime de repartição do INSS”, comenta.

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