Operário passou a "sacolinha" e torcida bancou a contratação de um ídolo
Ano de 1977, o futebol profissional em Mato Grosso do Sul estava só começando a sua história. Tinha o Estádio Morenão, em Campo Grande, inaugurado seis anos antes, como motivo de orgulho e uma espécie de ponto de encontro da população em dias de jogos de Operário e Comercial, fosse do Campeonato Estadual ou do Campeonato Brasileiro. Nem importava se quarta-feira, sábado ou domingo, qualquer jogo era sinônimo de casa cheia.
E foi nesse clima de euforia que a diretoria do Operário teve a ousadia de contratar um jogador consagrado no futebol mundial. Trouxe o goleiro Manga, um vencedor em todos os clubes onde havia jogado e que estava no Internacional de Porto Alegre. Aquela era uma época em que não havia patrocínios de empresas privadas no futebol, nem mesmo nos grandes clubes de São Paulo e Rio, muito menos por essas bandas do Brasil, e a palavra “estratégia de marketing” não fazia parte do nosso vocabulário. Sem nenhuma dessas ferramentas de negociação dos tempos atuais, a diretoria do clube fez valer algo que hoje não existe mais na relação entre torcedor e dirigente de futebol: credibilidade.
Para ter o goleiro Manga, então com 40 anos de idade, mas ainda em excelente forma, o Operário lançou uma campanha junto aos seus torcedores para arrecadar dinheiro vivo e viabilizar o investimento, ou seja, literalmente passou a “sacolinha”. Foram espalhadas várias urnas pela cidade e cada torcedor contribuía como podia. Centenas, milhares de operarianos “compraram” a ideia e depositaram nelas parte do salário. Muitos vibravam como se aquele ato fosse um gol do time do coração. Na sede do clube, na Avenida Bandeirantes, e na Rua Barão do Rio Branco, entre 14 de Julho e 13 de Maio, no centro da cidade, longas filas se formaram para as contribuições espontâneas.
A campanha foi um sucesso, o clube arrecadou o dinheiro que precisava, algo em torno de 150 mil cruzeiros (moeda da época), e o goleiro Manga trocou Porto Alegre e o Internacional por Campo Grande e o Operário. Sua chegada no aeroporto se transformou em um grande acontecimento. Desembarcou quando passava das 4h da tarde, mas desde o meio-dia os torcedores já se aglomeravam no saguão a espera do ídolo. Cada torcedor se sentia uma espécie de sócio no empreendimento.
Manga era um goleiro eficiente, reconhecidamente talentoso, e tinha a fama de predestinado a ser campeão. Quando chegou em Campo Grande, trazia no currículo os títulos de campeão da Taça Brasil de 1968, do Torneio Rio-São Paulo de 1962, 1964 e 1966, do Campeonato Carioca de 1961, 1962, 1967 e 1968, todos pelo Botafogo; da Taça Libertadores e do Mundial Interclubes de 1971 pelo Nacional do Uruguai, do Campeonato Brasileiro de 1975 e 1976 e do Campeonato Gaúcho de 1974, 1975 e 1976 pelo Internacional de Porto Alegre.
O Operário tinha no comando o treinador Carlos Castilho, um ex-goleiro titular do Brasil na Copa de 1954, na Suíça, e reserva imediato de Gilmar nas Copas de 1958, na Suécia, e 1962, no Chile, que entrou para a história do futebol como um goleiro de defesas quase impossíveis. Com Manga, estava formada uma dupla perfeita: um goleiro que beirava a perfeição, em campo, e um ex-goleiro quase perfeito, no banco.
Sua estreia no Operário foi diante do Caxias, em Caxias do Sul, pelo Campeonato Brasileiro, dia 23 de novembro de 1977. Levou três gols no empate por 3 a 3, mas não ficou dúvida sobre a importância do seu talento, experiência e prestígio para a equipe campo-grandense. O time ganhou confiança e personalidade. Eu era apenas um adolescente que sonhava com o jornalismo esportivo e vi o jogo pela televisão. Alias, naquele dia, além da minha atenção ao desempenho do goleiro Manga, também ficou marcado o fato de o locutor da TV Morena, o saudoso Robson Torres, durante a transmissão a todo instante chamar um dos zagueiros do Caxias pelo seu nome completo. Era Luiz Felipe Scolari.
Manga sofreu seis gols nos seus dois primeiros jogos no Operário. Quatro dias depois de enfrentar o Caxias, encarou o Grêmio no Estádio Olímpico, em Porto Alegre, e o placar foi o mesmo de Caxias do Sul: 3 a 3. No total, ele levou 13 gols em 13 dos 20 jogos que disputou em uma campanha histórica e emocionante de um time pequeno do interior do Brasil, que chegou até a fase semifinal do Campeonato Brasileiro e ficou em terceiro lugar, atrás apenas do São Paulo, campeão, e do Atlético Mineiro, vice. Foram 10 vitórias, seis empates e quatro derrotas, 28 gols marcados e 15 sofridos.
Quando deixou o Operário de Campo Grande, Manga assinou contrato com o Coritiba, onde conquistou o título paranaense de 1978, voltou ao futebol gaúcho para ser campeão estadual com o Grêmio em 1979 e depois deixou o Brasil para ser campeão equatoriano de 1981 pelo Barcelona de Guayaquil. O Manguinha, como costumava se colocar na terceira pessoa, encerrou a carreira aos 45 anos de idade.
E foi graças a um atributo um tanto fora de moda no futebol atualmente que sua contratação pelo Operário tornou-se possível: credibilidade. Não fosse por isso, milhares de sul-mato-grossenses não teriam tido a chance de ver de perto, torcer e admirar um goleiro espetacular, seguro e carajoso, do tipo que não tinha dúvida na hora de partir para a dividida com os atacantes. E eu não teria essa história para contar.