Arquitetura da miséria: nem chuva leva barraco feito de lona e cadarço
Há quase um ano casal mora em estrutura sustentada no barranco íngreme, feita por coisas jogadas no Anhanduí
Ao longo do Rio Anhanduí, miséria não é ficar sem comer. O lixo que domina o lugar, com restos de marmitas, garrafas e tudo que se imaginar, comprova que alimento até aparece, mas a “fome” é pela droga. Nesse cenário de dependência, o teto improvisado é a única solução é se confunde com os entulhos que lotam o entorno de um dos principais rios de Campo Grande.
O impressionante é a arquitetura criada por quem só é visto da perspectiva de quem acho "feio" para uma cidade que, diga-se de passagem, não tem política eficiente de reabilitação e costuma investir mais em expulsão de quem "estraga paisagem". Por outro ponto de vista, é algo genial, sobreviver com o abandono. Em lugar específico do Anhanduí, isso fica evidente na casa de lona azul e amarela, que resiste há cerca de um ano, sem buracos, com janelinha e até “escada” para descer o barranco íngreme que, por qualquer deslize, pode te levar à água, que fica a menos de dois metros do final dos degraus.
A estrutura impressiona pela proximidade com o rio. De longe, a imagem é de uma lona enorme, como se fosse um banner publicitário, deslizando para dentro da água. Mas é só fazer o retorno na avenida e a revelação vem em um sorriso de poucos dentes. Da pequena janelinha, que mais parece a moldura de um porta-retratos velho, a dona da casa diz bom dia.
Surpresa, ela pede para não ser fotografada de frente e fala só o primeiro nome: Rodislene. Mas aceita receber a visita curiosa sobre como aquele mundo de 16 metros quadrados surgiu. Para entrar, ela estende a mão e ajuda a chegar à única porta, depois de três degraus de escada feita de terra.
Ali já começam as gambiarras da vida de quem se vira com o que os outros despejam no rio. Quatro pilares de madeira no fundo e três na frente sustentam a morada que parece estar desmoronando, mas resistiu firme até ao temporal do domingo (1º). “A gente fez um buraco bem fundo, por isso não tem tempestade que leve o barraco embora”, garante.
Aos poucos, aparecem detalhes como os cadarços e cordas que prendem a lona a um tronco transformado em “viga”. O “acabamento” de segurança, segundo a mulher que ajudou o marido na construção, é uma corda amarrada em um troco com raízes fundas, o que sobrou de uma árvore. “Você acha que é fraco? É nada. Tá tudo muito bem preso ali”.
Muito magra, Rodislene jura que não usa drogas. Diz ser exceção aos vizinhos, que sob viadutos e em barracas no meio do matagal parecem totalmente desnorteados logo pela manhã.
Ela conta que o casal veio de Dourados, em busca de emprego. Não achou e acabou entrando na legião de catadores de latinhas, plástico e papelão. Não tem luz no barraco. Velas e uma lanterna iluminam a noite. A água vem dos vizinhos e fica em uma garrafa térmica. "Eles dão porque sabem que a gente é do bem, não perturba ninguém por aqui", justifica.
Dentro, a maioria dos móveis foi descartada na beira do Anhanduí, como o colchão, algumas roupas e coisas doadas.
Do lado de fora, os dois aproveitaram o barranco também para plantar. Rodislene mostra orgulhosa pés de mandioca que já renderam "colheitas" e outros para gerar cana e abacaxi, que ainda estão por vir.
De repente, carro estacionado ao lado do barraco oferece cabides e papéis para que o casal ganhe um dinheirinho. Ela aceita feliz, mas fecha a cara quando outro casal passa e pede um pouco. “Isso aqui não é doação não. É um combinado que eu fiz”, grita, mostrando mais um lado da lei da sobrevivência quando uma dúzia de cabides de plástico pode render o trocado do dia a quem diz em tom áspero que "se livrar da miséria é uma coisa impossível para gente como nós".