Fazenda de 81 anos tem quarto dos avós intacto e história “viva” de MS
A 20 km do Centro, fazenda de Eduardo é um verdadeiro memorial para quem deseja encontrar boas histórias
Algumas pessoas preferem eleger uma única imagem ou objeto de cada lugar que passou ou viveu durante a vida para guardar como lembrança, mas na fazenda do pecuarista Eduardo Olímpio Machado Neto, de 70 anos, situada a 20 quilômetros do Centro de Campo Grande, uma imensidão de objetos compõem o repertório de afeto e memória da família, que está na essência da expansão urbana da capital sul-mato-grossense.
A história entre as paredes de 81 anos da Fazenda Água Branca, com uma das mais antigas sedes da cidade, pertence a Paulo Coelho Machado, que iniciou sua construção do lugar em 1940, vendo a casa ficar pronta em 1941.
A trajetória de Paulo não é desconhecida. Considerado um dos maiores intelectuais que já viveram em Campo Grande, foi pecuarista, advogado e escritor, que nasceu em 16 de dezembro de 1917, em São Paulo, mas detestava dizer que era de lá. “Papai tinha orgulho de falar que era campo-grandense”, lembra o filho Eduardo, o herdeiro da propriedade e dono de uma memória e simpatia admiráveis.
O local não é a casa onde Eduardo vive, mas o refúgio onde ele encontra boa parte de sua paz. Do chão às paredes, tudo ali cria uma identidade de maneira afetiva e pessoal para o pecuarista, que buscou desde jovem, inspiração na história do pai para preservar todas as suas referências.
“Papai era um historiador, apaixonado pelos livros, pela escrita, pela história. Tudo aqui tem uma história e ele também gostava de preservar. Quando ele se foi, encontramos um jeito de manter essa história viva e ela está por todos os cantos”, conta o filho, enquanto faz um passeio com o Lado B pela área interna da sede.
Apesar de boa parte dos ambientes e paredes preenchidas com memórias, ali não está tudo que fez e ainda faz parte da história da família. Inúmeros livros já foram doados para bibliotecas e outros mobiliários e documentos também estão com uma das irmãs, Marisa, que ama preservar como Eduardo.
Dos “Quartos dos Avós” ao escritório da intelectualidade
Não é à toa que nos últimos anos, a fazenda virou ponto de pesquisa (pré-agendada) com Eduardo para muitos estudiosos. “Já recebi muito arquiteto e historiador aqui que vieram coletar dados em livros do papai ou saber mais da história. A gente recebe com muito carinho, porque temos muito orgulho do que ele e a família construíram.”
Mais do que uma sede original, a casa é um verdadeiro memorial. Dois dos ambientes são chamados por Eduardo como os “Quartos dos Avós”. De um lado da casa, está o quarto em memória aos avós paternos, o baiano Eduardo Olympio Machado, que chegou por aqui para ser juiz e se casou com Elvira Coelho Machado.
Ali está a mesma cama, penteadeira, roupeiro, mesas de cabeceira e fotografias antigas de viagens importantes que fizeram e duraram meses. Uma sequência de três imagens em décadas diferentes revelam as visitas do casal a Buenos Aires, na Argentina. Numa delas, Elvira até aparece grávida de Paulo.
Do outro lado, está o quarto dos avós maternos. A parede revela a juventude do vovô Leonardo Corrêa da Silva e Dulce Guimarães Corrêa, eles eram os pais de dona Zilá Corrêa Machado.
Leonardo ficou conhecido como “Vovô Autonomista”. Ele tinha propriedade na região que se tornou bairro em Campo Grande e ganhou o nome de Jardim Autonomista em sua homenagem.
No quarto, também estão mobiliários icônicos de madeira maciça, que foram restaurados, mas não perderam sua originalidade. O pesinho de porta ensacado é outra surpresa. Sem saber mensurar os quilos, Eduardo tira do saco e revela um pedacinho do trilho da antiga estrada de ferro.
Em outros pontos da casa, mais história. Parece até injusto resumir tudo numa única reportagem. Os elementos em cada espaço dariam conteúdo para uma série.
Não é à toa, também, que ali ainda está o escritório de Paulo, com móveis de madeira e pintados de preto, que foram feitos por um português que vivia em Campo Grande. O mobiliário esteve aqui e no Rio de Janeiro, quando Paulo teve escritório de advocacia por lá. Depois, eles retornaram à Fazenda Água Branca para compor o escritório do advogado.
Na mesa onde está um dos primeiros mapas da fazenda desenhado à mão e inúmeras fotografias, Paulo escreveu parte de sua produção literária sobre expressivos acontecimentos que cercaram a história de Campo Grande.
Na antiga sala principal, hoje estão estantes lotadas de prêmios, homenagens e troféus do tempo em que Paulo se destacava como pecuarista. “Na época, avaliação que faziam de gado era visual, hoje, tem muitos outros aspectos avaliados. Então, cada troféu desses é um prêmio que papai ganhava”, recorda. O local ainda tem o piso hidráulico original e as janelas de vidro que vieram de fora.
Eduardo nos leva até a cozinha, ambiente que foi construído anos depois. “A casa foi crescendo. Originalmente, ela tinha poucos ambientes, depois, ela foi aumentando para os lados e ficou desse tamanho.”
A cozinha, hoje enorme, conta também com uma sala cheia de lembranças. Fotografias, coleções, brinquedos, souvenirs, achados de viagens de Eduardo e toda a família. No alto de uma estante, está a coleção de canecas de Paulo, hoje intocáveis. “Ele nem bebia direito, mas gostava da coleção de canecas”, recorda o filho.
Na parede, também está o apreço de Eduardo pela fazenda e suas peculiaridades. Uma fazendinha em miniatura foi seu brinquedo de infância e se mantém preservada até hoje. Recentemente, numa de suas viagens pelo interior, ele comprou uma fazendinha parecida para presentear o neto. “Aquela é o meu xodó, então, quero que ele tenha uma também”.
Em uma cristaleira, no lugar de taças ou itens de cozinha, estão os brinquedinhos que fizeram a infância de Eduardo. Um deles veio da Europa, uma pequena máquina a vapor que ainda funciona e foi presente especial da irmã. “Essa é minha relíquia, não tenho coragem alguma de me desfazer”, mostra orgulhoso.
A paixão rubro-negra também está na parede com uma camiseta do Flamengo original assinada pelo Zico, considerado um dos melhores jogadores da história. “É meu time do coração”, justifica o dono.
É com esses e muitos objetos que o clima de interior com referências do campo e sensação de tranquilidade se faz presente em todos os cantos da casa, mas com dose extra de boas histórias para contar, afinal, a fazenda foi ao longo dos últimos anos cenário para muitos encontros em família, casamentos e festas.
Hoje o lugar também é a sede do Instituto Paulo Machado de pesquisas em alimentação. O qual seu filho Paulo Coelho Machado Neto e Eduardo são sócios. Ali já foram realizadas várias pesquisas com pimentas e carne bovina de zebu.
Lá fora, tudo a olho nu é mais bonito
Na área externa, Eduardo e quem visita também se oxigena de memórias, principalmente ao observar atentamente a arquitetura. Das molduras de janelas ao piso de caquinhos logo na entrada da sede, todos marcam um símbolo afetivo. O piso que começou como uma alternativa de baixo custo virou um estilo bem brasileiro nas casas mais antigas e te faz voltar no tempo.
Outra parte é revestida com pedras encontradas na serra e a varanda tem bancos que eram da Avenida Afonso Pena. Diversos itens de ferro, maquinários, hoje obsoletos, estão no jardim como decoração ou “instalação”, como alguns preferem denominar.
Depois do jardim, apesar do pasto aparente para manutenção da pecuária no local, é visível que a natureza ainda não foi esquecida. Tem árvores gigantescas por toda parte, no entanto, a maior beleza está no corredor de entrada da fazenda.
A fotógrafa se esforça para encontrar o melhor ângulo a fim de que o leitor tenha dimensão do que conseguimos ver presencialmente. “Mas tudo a olho nu é mais bonito, não adianta”, expressa Kísie Ainoã, enquanto registra com sua câmera as 16 ficus benjamina, árvores da família das figueiras, que tem mais de 30 metros de altura e formam um corredor lindíssimo na entrada da propriedade.
Ali, você até respira diferente, pelo frescor e barulho de acordo com o vento. Eduardo pega o seu chapéu e caminha entre as árvores já observadas, talvez, milhares de vezes, mas consegue encontrar sempre algum detalhe diferente. “Dessa natureza aqui, eu não abro mão. Elas são árvores com raízes que vão longe, às vezes, invadem canos, causam rachaduras, mas eu não abro mão delas”.
Questionado se um dia as árvores imensas já foram alvo de cortes, ele nega e diz que enquanto viver, isso não acontecerá.
Quanto à memória “viva” nos livros, documentos e relíquias dentro da casa, Eduardo diz que também não sabe o destino, já que somente ele e uma das irmãs são os que mais gostam de preservar. “A gente brinca que as coisas chegam na gente, grudam e não temos coragem de jogar fora. Mas depois que eu morrer, eu não sei se meus filhos vão tacar fogo ou preservar”, diz brincando.
No entanto, revela que ele e a irmã já estão conversando nos últimos tempos sobre o destino dessa história. “Sim, já falamos sobre o que fazer com isso tudo. Nosso sonho é dar um destino para que as memórias se mantenham, sem dúvidas”, finaliza.
Confira mais fotografias da fazenda abaixo:
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