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Arquitetura

No meio do nada, padre ousou construir igreja ao estilo Sputinik

José Daniel entrou para a história pela criatividade e coragem de homenagear satélite soviético

Ângela Kempfer | 06/12/2022 06:50
Igreja de Vicentina com foguete no topo. (Foto: Arquivo CMV)
Igreja de Vicentina com foguete no topo. (Foto: Arquivo CMV)

Durante quase 10 anos, o padre José Daniel esperou a realização de um sonho em Vicentina, antigo distrito de Fátima do Sul. Ele lutou para ver sua criatividade sair do projeto arquitetônico e surgir uma igreja em homenagem ao programa russo Sputnik, um dos símbolos da Guerra Fria, quando EUA e União Soviética lutavam para ver quem chegaria primeiro ao espaço.

Nos arquivos do CMV (Centro de Memórias Vicentina), apesar de muito bem montados, algumas lacunas ficaram no tempo. Mas Luana Tainah Alexandre Braz, doutoranda em Educação pela UFGD, é um das dedicadas a reproduzir a história em detalhes.

Dia do lançamento da Sputnik 1, no Cazaquistão. (Foto: Arquivo CMV)
Dia do lançamento da Sputnik 1, no Cazaquistão. (Foto: Arquivo CMV)

O motivo da Igreja de Nossa Senhora Rainha dos Apóstolos ser inspirada no primeiro satélite a orbitar a Terra é uma suposição. “Algumas pessoas falam que o padre tinha apreço pelo Sputnik, aí ele passou a ideia e o arquiteto projetou”, explica Luana.

Textos históricos guardados pelo CMV dizem que “o Sputnik foi homenageado no telhado dourado, que culmina em uma ponta aguda na direção do espaço”. Ao ver o prédio, o foguete parece estar no topo, com uma grande "saia" de fogo que forma o telhado, como se fosse o momento do lançamento. Ao fundo, o formato redondo lembra o satélite, que se desprendeu na atmosfera levado pelo foguete em 1957 e marcando um ponto na briga contra os EUA.

Nos registros de época, o antigo morador, Eutácio Caetano Braz, conta que “queriam levar o projeto para uma cidade vizinha, mas não deixamos". Padre Genésio Trevizan, que também foi vigário da cidade, lembra que "foi um projeto caro, que hoje ninguém faria".

Igreja vista de lado, com a ponta que seria o foguete e o satélite atrás, arredondado. (Foto: Arquivo CMV)
Igreja vista de lado, com a ponta que seria o foguete e o satélite atrás, arredondado. (Foto: Arquivo CMV)

Mas o padre José Daniel parecia ter uma missão. Pediu dinheiro a quem podia, inclusive ao exterior. “Mandava cartas à pessoas influentes e conseguiu”, diz Luana. Segundo registros do CMV, a planta chegou em 29 de agosto 1972, doada e assinada pelo famoso arquiteto Emilio Zanon.

Bom de contatos, o padre conseguiu o desenho do mesmo homem que teve a ousadia de fabricar vitrais num país de nenhuma tradição nesse trabalho. Morto em 2008, e italiano radicado no Brasil, Zanon assina os vitrais da Catedral de Brasília e várias igrejas pelo País.

Em 25 de junho de 1976 começou a obra, mas só em 17 de dezembro de 1978 já havia alguma estrutura para a primeira ordenação no local. Mas dois anos antes, o histórico padre José Daniel norreu, sem a felicidade de ver o sonho totalmente concluído.

Padre com alunas de escola que hoje leva o nome dele. (Foto: Arquivo CMV)
Padre com alunas de escola que hoje leva o nome dele. (Foto: Arquivo CMV)

Antes, em 1956, o próprio padre havia levantado a primeira capela com madeira, transportada em carroça e no Jipe, que era uma das marcas do gaúcho nascido em 2 de março de 1920, em Vale Vêneto, no Rio Grande do Sul.

Quando chegou em Vicentina, há 67 anos, só encontrou mato e famílias trazidas na chamada "Marcha para o Oeste", atraídas pelo projeto do presidente Getúlio Vargas, para a colonização deste lado do Brasil, com doações de terras na região da Grande Dourados.

Primeira capela feita em Vicentina, de madeira transportada e erguida pela população. (Foto: Arquivo CMV)
Primeira capela feita em Vicentina, de madeira transportada e erguida pela população. (Foto: Arquivo CMV)

Então, o padre percebeu que tinha muito a ser feito para atender as pessoas que chegavam. Resolveu que iria construir a primeira escola, com os dois níveis de ensino e 25 salas de aula e também vingou. “Ele se preocupava com a educação das crianças que chegavam”, diz Luana. Hoje, o colégio tem outro nome e uma homenagem merecida: Escola Estadual Padre José Daniel.

Pelas obras, o religioso era o mais respeitado e incansável dentre um grupo que o ajudou a transformar a cidade. O nome Vicentina, por exemplo, se deu em homenagem a São Vicente Pallotti, fundador da congregação dos padres palotinos, da qual o José Daniel pertencia. Ao lado dos amigos, ele também fundou o ginásio comercial Vicente Pallotti, construiu a casa paroquial, instalou o curso técnico de comércio e o curso normal.

Mas tudo em Vicentina dependeu sempre da população, dizem os mais velhos. Plebiscito tornou o distrito cidade, mas por apenas 9 meses. O presidente Ernesto Geisel não gostou da “brincadeira” e o lugar voltou a ser distrito. Depois, mais 2 plebiscitos tentaram, com a campanha do "sim" e a turma do "não".

Projeto inspirado na Sputnik em construção. (Foto: Aequivo CMV)
Projeto inspirado na Sputnik em construção. (Foto: Aequivo CMV)

Nome que ajudou a erguer Vicentina, José Ferreira do Nascimento define em uma frase a complicação. “Não teve no Brasil um lugar mais difícil de criar município como Vicentina”. Só em 1989 finalmente veio a independência e até hoje a igreja segue firme, como símbolo de fé de quem veio até de outros países para construir a cidade.

“O telhado atualmente está em processo de reforma aos poucos. Fizeram os beirais recentemente e agora o próximo passo é ir reformando todo ele. Pois quando chove molha nas laterais. Mas não é exposto. O forro de PVC está íntegro. O altar foi reformado recentemente também”, detalha Luana. Mas como o lugar hoje é o maior patrimônio histórico da cidade, “a cada alteração na estrutura original, os fiéis são consultados”, completa.

O satélite Sputnik que depois foi substituído por módulo que levou a cadela Laika à morte. (Foto: Arquivo)
O satélite Sputnik que depois foi substituído por módulo que levou a cadela Laika à morte. (Foto: Arquivo)

Sputnik - Visionário, o padre foi buscar longe a ideia da igreja. Na antiga União Soviética, o projeto Sputnik lançou em 4 de outubro de 1957. A primeira ideia era um satélite com mais de 1000 kg levado pelo foguete. Mas governo soviético acabou optando por dois de 100 kg, sob o argumento de que era necessário enviar o satélite primeiro que os norte-americanos.

Só em janeiro de 1958 os Estados Unidos conseguiram lançar o primeiro satélite: o Explorer 1, depois de três fracassos e explosões.

Não satisfeitos, os russos buscaram outra vitória na corrida espacial: enviar o primeiro ser vivo, antes dos Estados Unidos chegar à Lua. A escolhida foi a coitada da cadela Laika. Ao contrário do que os soviéticos contavam à imprensa, o módulo que transportava a cadela não havia sido projetado para retornar à Terra, já sabendo que a cadela morreria.

Oficialmente, depois de dez dias, Laika faleceu em decorrência do superaquecimento da estrutura do Sputnik 2, e essa informação foi mantida em segredo até o fim da União Soviética, em 1991.

Laika ganhou um selo em homenagem como personagem sacrificada na Guerra Fria. (Foto: Reprodução)
Laika ganhou um selo em homenagem como personagem sacrificada na Guerra Fria. (Foto: Reprodução)


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