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Arquitetura

Prédio evoca passado da Calógeras que já teve vida e acaba aos poucos

Estrutura resiste ao lado de comerciantes que presenciaram do auge ao abandono da avenida que parou no tempo

Jéssica Fernandes | 11/04/2023 07:22
Na Avenida Calógeras, prédio número 2676 está em condições precárias. (Foto: Alex Machado)
Na Avenida Calógeras, prédio número 2676 está em condições precárias. (Foto: Alex Machado)

A passagem das décadas e a ausência de cuidado não foram gentis com as fachadas históricas da Avenida Calógeras. Imagens do passado, as edificações resistem ao lado de comerciantes que presenciaram a ascensão e queda da região que um dia exalava a vida.

Entre a Avenida Mato Grosso e a Rua Maracaju, a Calógeras conserva a aparência que remete ao período em que comerciantes ouviam o apito do trem e aguardavam quem descia da estação chegar à porta da loja. O prédio número 2676 é o retrato desse pedaço que poucos notam e quem nota anseia ver algo mudar.

A fachada perdeu o tom vibrante do amarelo que segue descascando e dando lugar ao branco, rachaduras, pichações e mofo. Das três janelas apenas uma permanece inteira com blocos de vidro que revelam uma cortina por trás.

Janela de madeira indica a existência de um buraco no teto. (Foto: Alex Machado)
Janela de madeira indica a existência de um buraco no teto. (Foto: Alex Machado)

Se a primeira esconde o que há dentro do prédio, a segunda de madeira indica a existência de um buraco no teto, enquanto da última só ficou a grade de proteção. No lado direito, as raízes de uma árvore se sustentam nas fissuras da estrutura.

Transformação pela arte - Para mostrar o potencial que o prédio tem e apresentar um novo destino para o local, ainda que somente através de desenhos e obras, o Lado B convidou as artistas Thalya Palhares e Sara Synoi a olharem para a estrutura e por meio da arte representarem o que o imóvel poderia ser.

A reportagem também conversou com pessoas que moram e trabalham na região para falarem como elas gostariam de ver o prédio e a própria Avenida Calógeras. O relato dos moradores podem ser conferidos a seguir e o trabalho das artistas no final da matéria.

Árvore criou raízes entre as fissuras da parede. (Foto: Alex Machado)
Árvore criou raízes entre as fissuras da parede. (Foto: Alex Machado)

Gilberto Siqueira, de 60 anos, é proprietário da Selaria Florêncio, que um dia pertenceu ao pai dele. O comerciante é quem revela o passado do prédio 2676.

“Era uma boate e desde que eu me lembro era isso. Aquelas janelas lá e essas portas eram iguaizinhas, umas portas bem interessantes. Aí trocou de dono e foi acabando devagar, talvez porque ninguém tinha interesse ou o aluguel era caro”, fala.

Além da casa de entretenimento adulto, Gilberto fala sobre os demais prédios da região e o momento em que os proprietários os deixaram. “Aqui tinha tudo, tinha bar, loja, restaurante, hotel, tinha tudo. Quando o trem vinha de Corumbá o pessoal descia assim, era bacana. Quando o Lúdio colocou essa faixa para ônibus, não sei quem teve a ideia, se foi arquiteto, mas aí começou a acabar, foi aos poucos”, comenta.

Gilberto Siqueira opina que prédios deveriam ser restaurados ou demolidos. (Foto: Alex Machado)
Gilberto Siqueira opina que prédios deveriam ser restaurados ou demolidos. (Foto: Alex Machado)

Gilberto não tem esperança de voltar a ver a Calógeras como a conheceu na infância e adolescência. Para ele, só existem duas soluções possíveis para os imóveis vizinhos ao seu.

“Sinceridade? Ou preserva a fachada ou chega, fotografa, coloca no arquivo municipal da cidade, pega um correntão, passa o trator e constrói outra coisa. Não adianta ficar isso aí, não vai arrumar”, pontua.

Quem viveu os dias de glória da região não tem perspectiva para o trecho da avenida que é conhecido como ‘centro velho’. Laerte Gomes da Silva, de 56 anos, chegou em 1989 na avenida e mora no prédio ao lado do 2676.

Laerte indica grafiato que fez na parede há 26 anos. (Foto: Juliano Almeida)
Laerte indica grafiato que fez na parede há 26 anos. (Foto: Juliano Almeida)

Na parede, a placa com letra estilizada traz o primeiro nome do morador e a profissão. Pintor, ele conta que mesmo nos melhores dias a Calógeras tinha seus problemas. “Essa calçada era dessa altura, chovia, a água empoçava tudo e eu fiz esse grafiato há 26 anos”, declara.

Próximo ao grafiato, o portão entreaberto revela o corredor que dá acesso a outra porta. O caminho acaba onde começa o lar de Laerte, que não aparenta preocupação se a Calógeras vai mudar ou continuar como está.

Laerte relata que andou de trem, que ‘cansou’ de viajar para Corumbá e só depois desabafa que se incomoda com usuários e traficantes que circulam a região. “A gente tá aqui porque se não estivesse o pessoal já estava invadindo, usando droga. Eu só quero viver a vida, tem que acabar com isso aí”, ressalta.

Corredor dá acesso à casa onde pintor vive para ninguém invadir. (Foto: Juliano Almeida)
Corredor dá acesso à casa onde pintor vive para ninguém invadir. (Foto: Juliano Almeida)

Carlos Obeid, de 33 anos, mora há três anos em um dos prédios localizados na Avenida Calógeras entre as ruas Antônio Maria Coelho e Maracaju. O imóvel está na família há décadas, bem antes do ‘declínio’ da região.

“Eu acho que o declínio da região se deu com o fim da ferrovia, porque todo mundo que chegava tinha que vir pela ferrovia. Então, gerava um trânsito em direção ao Centro e movimentava as lojas”, opina.

Após comentar sobre o motivo da decadência da região, o morador assume tom otimista e fala a única alternativa que poderia melhorar o cenário. Ao mesmo tempo que propõe a solução, ele indica os possíveis entraves para que ela seja posta em prática.

Carlos Obeid acredita que entretenimento pode melhorar a região. (Foto: Juliano Almeida)
Carlos Obeid acredita que entretenimento pode melhorar a região. (Foto: Juliano Almeida)

“O único futuro que vejo para essa região é entretenimento, mas tem uns vizinhos antigos aqui que implicam. Abriram dois bares, Holandês Voador e O Resista, que movimentavam muito bem a região”, afirma.

Ambos os bares fecharam e os imóveis, que antes eram frequentados pelo público e contavam com programação cultural, permanecem com as portas fechadas dia e noite.

Em outro momento da conversa, Carlos menciona que anteriormente os moradores e comerciantes da região acreditaram que a Calógeras poderia acompanhar as mudanças da cidade.

Na Rua Antônio Maria Coelho, prédio cinza funcionava como bar. (Foto: Juliano Almeida)
Na Rua Antônio Maria Coelho, prédio cinza funcionava como bar. (Foto: Juliano Almeida)

“Sinceramente, já houve uma expectativa anterior quando fizeram essa reforma. Aí havia uma expectativa de melhorar. Existe um boato que a prefeitura quer comprar, fazer prédio não sei se é residencial ou não. Tem um projeto de revitalização, passou uma empresa fazendo medições, mas até agora nada”, ressalta.

'Teve vida' - A nostalgia e a indignação se misturam no relato de uma comerciante da região que pede para não ser identificada. “Há 50 anos que tô aqui e há 50 anos que vejo isso aí”, afirma ela sobre a situação dos prédios do outro lado da rua onde trabalha.

Entre a Av. Mato Grosso e Rua Maracaju, estruturas estão vazias na avenida. (Foto: Alex Machado)
Entre a Av. Mato Grosso e Rua Maracaju, estruturas estão vazias na avenida. (Foto: Alex Machado)

Apesar de o cenário seguir inalterável, a lojista garante que nem sempre foi assim. “Era tudo de bom, principalmente quando o trem parava ali e o povo todo descia, vinha no comércio, comprava, era diferente. Hoje em dia é isso que você vê, infelizmente é isso. Ela foi melhor? Foi. Teve vida? Teve vida”, frisa.

Na visão dela, a avenida se tornou o retrato do abandono enquanto outros pontos da cidade recebem investimento. “Tá tudo abandonado e a Calógeras é isso. Antes você não via uma loja fechando, não sei porque ela tá abandonada. Eles investem mais na 14 de Julho e aqui não investe nada. Aqui, se desse um pouco mais de atenção talvez não estivesse abandonada como está hoje. Você paga isso, aquilo e quando chega final do ano aqui tá abandonado e só lá (14 de Julho) é enfeitado, só lá é tudo”, destaca.

Vivaldo Souza, de 51 anos, é funcionário de um posto de gasolina que fica ao lado do prédio amarelo. Ao olhar a estrutura e pensar no que ela poderia se transformar, ele diz: “Uma loja de artesão, alguma coisa pra trazer o povo pra cá, porque nossos governantes esquecem de envolver esse pedaço. Aqui não tem quem venha passar, a escuridão, as lâmpadas tudo queimada, sempre foi assim”, afirma.

Prédio amarelo 2676 divide parede com posto de combustível. (Foto: Alex Machado)
Prédio amarelo 2676 divide parede com posto de combustível. (Foto: Alex Machado)

Sobre o sentimento de trabalhar há quatro anos no lugar que, às vezes, parece estar longe da área central de Campo Grande, ele comenta. "Um terror, é muito calmo, parece que nem tá no centro da cidade, principalmente à noite, ninguém faz nada aqui, tem medo de investir”, declara.

Projeto de revitalização - Em novembro de 2021, a Prefeitura de Campo Grande iniciou o projeto de revitalização da Avenida Calógeras. Orçada em R$ 13 milhões, a obra foi interrompida há 4 meses. Na época, a empresa responsável pela execução da obra GTA Projetos e Construções LTDA suspendeu o serviço alegando atraso no pagamento.

O projeto de revitalização prevê a execução de 3,5 quilômetros de recapeamento em toda extensão da Avenida Calógeras entre as Avenidas Salgado Filho e Mato Grosso.

Na avenida, prédios tiveram fachadas pichadas. (Foto: Juliano Almeida)
Na avenida, prédios tiveram fachadas pichadas. (Foto: Juliano Almeida)

No trecho, a prefeitura pretende implantar 1.450 metros de ciclovia, corredor exclusivo para transporte coletivo, cinco estações de embarque e desembarque, sinalização de trânsito e implantação de 2,6 quilômetros de drenagem para captar a enxurrada que desce das transversais e eliminar pontos de alagamento.

Em 2021, a obra começou com a implantação do 1º trecho dos 2,6 quilômetros, que estão bem longe da Calógeras que Carlos, Laerte, Gilberto, Vivaldo e tantos outros encaram diariamente.

A reportagem entrou em contato com a prefeitura e solicitou posicionamento sobre a retomada das obras de revitalização. Até o momento da publicação a reportagem não obteve resposta.

Porta de imóvel na Avenida Calógeras próximo a Mato Grosso. (Foto: Juliano Almeida)
Porta de imóvel na Avenida Calógeras próximo a Mato Grosso. (Foto: Juliano Almeida)

Floricultura e Casarão para artistas - O Lado B recorreu à criatividade de duas mulheres que, por meio da arte, mostraram o potencial que um dos imóveis da região tem. O prédio foi usado como exemplo para retratar os demais que compõem o trecho da avenida entre a  Mato Grosso e Maracaju.

A artista Sara Synoi criou uma ilustração para retratar um das possibilidades que o prédio 2676 poderia ser. Ela relata que  através da arte projetou um sonho antigo.

"Através desse desenho venho trazer umas das minhas grandes vontades: Ter uma floricultura. Desde pequena sempre estive em contato com plantas, ficava fascinada ao ver um broto se transformar numa planta grande. Hoje venho cuidando de plantas, tenho um jardim dentro de casa e queria tornar isso algo maior. Ter uma floricultura tornaria isso tão palpável, esse afeto com as plantas e a natureza. Por este motivo quis fazer essa revitalização, transformando esse edifício abandonado numa floricultura”, explica.

Artista Sara Synoi transformou prédio da Calógeras em floricultura. (Ilustração: Sara Synoi)
Artista Sara Synoi transformou prédio da Calógeras em floricultura. (Ilustração: Sara Synoi)

Outra pessoa que mostrou como gostaria de ver a estrutura é a artista e tatuadora Thalya Palhares. À mão, ela pintou o que seria um espaço destinado para outras pessoas exporem trabalhos artísticos.

“Se chama Casarão Urbano para artistas de rua exporem suas artes, é como se fosse uma ideia de um projeto social. Coloquei plantas no telhado que é a ideia do telhado verde, que é um projeto de permacultura muito daora que visa a ideia do bem-estar das plantas e  a saúde das pessoas. Trabalhei bastante em planta, porque acho muito importante essa nossa conexão com elas", diz.

O intuito desse casarão, segundo ela, serviria também para ajudar pessoas em situação de rua que produzem qualquer tipo de arte. Thalya explica que o Casarão Urbano iria contribuir para que essas pessoas tivessem onde expor o trabalho sem enfrentar 'burocracia'.

Casarão Urbano serviria de espaço social para artistas em situação de rua. (Ilustração: Thalya Palhares)
Casarão Urbano serviria de espaço social para artistas em situação de rua. (Ilustração: Thalya Palhares)

“Esse casarão seria para ajudar esses artistas terem um espaço para que eles consigam expor as obras deles e conseguir uma grana com isso. Por exemplo, parece que para você ser um artista renomado e conhecido você tem que estar numa galeria, ter uma formação e diploma. O que eu quis passar é um espaço totalmente social que acolhe a ideia desses artistas e não tem essa burocracia deles precisarem de um diploma para serem reconhecidos e a arte deles ter um valor", conclui.

Artista apostou no conceito de permacultura com telhado verde. (Ilustração: Thalya Palhares)
Artista apostou no conceito de permacultura com telhado verde. (Ilustração: Thalya Palhares)
Desenho traz mescla de tons suaves e terrosos para criar fachada colorida. (Ilustração: Thalya Palhares)
Desenho traz mescla de tons suaves e terrosos para criar fachada colorida. (Ilustração: Thalya Palhares)

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