Antes da memória de Higa se apagar, cineasta filma vida dele por 12 anos
Documentário é apresentado de maneira fragmentada e não conta apenas sobre o Alzheimer do fotojornalista
“Aquilo que ele mais valoriza é o que ele está perdendo. O que mais capturou e explorou está se esvaindo, sendo cobrado de alguma maneira”.
A fala do cineasta Conrado Roel descreve parte da jornada de 12 anos de gravação sobre a vida de um dos maiores fotojornalistas sul-mato-grossenses, Roberto Higa. A frase é uma ironia poética dentro do nome do documentário “Olho por olho - Ensaio sobre pela memória fotográfica de Roberto Higa”. Na metáfora das duas lentes, as memórias dele ganham vida e se cruzam com as dos próprios diretores. Isso porque retrata uma Campo Grande que ficou apenas nas fotografias.
A narrativa é feita de maneira fragmentada e não conta apenas sobre o Alzheimer de Roberto. Inclusive, esse sequer era o intuito quando Conrado e Debora Bah tiveram a ideia de começar as filmagens. O objetivo é manter o legado de quem viu o Estado nascer e a Capital se transformar no que é.
“Era uma descoberta também nossa, do nosso próprio passado e memórias, preenchendo lacunas sobre o que a cidade nos influenciou. Teve esse espírito de experimentação. Depois de um tempo achamos que essa era a graça, ter passado tanto tempo acompanhando ele”.
As gravações começaram quando Higa tinha 60, hoje, o “arquivo ambulante” está com 73 e, embora o Alzheimer esteja levando parte do que ele foi e viveu, a lucidez e as lembranças foram captadas ao longo desse tempo pela equipe. Conrado conta que começaram o projeto no que o cinema chama de "guerrilha", sem muitos recursos e com a ajuda de amigos para ter mais câmeras no set.
“A gente viu os efeitos do Alzheimer através dos anos mudar a relação dele com a própria doença e com a velhice. Vimos ele envelhecer, a doença chegar. Isso é um arco narrativo. Temos um recorte da vida de uma pessoa. O filme foi feito descobrindo caminhos e não existia uma percepção logo no início de como seria no final”.
Segundo o cineasta e jornalista, Higa encarou a condição bem até admitir para si próprio que ela estava piorando. Aos poucos, fatos e memórias ficavam confusas e ele já não lembrava em que dia estava.
“Ele sempre foi muito resiliente, um cara que tem ponto de vista ligado à outra época. Traz um pouco desse pragmatismo que a gente não vive mais, de que as coisas precisam ser resolvidas. A espiritualidade dele é uma espécie de metáfora para resolver o desejo dele de que o legado permaneça”.
Depois de tanto tempo filmando, os laços entre Conrado e Higa se estreitaram e a inspiração que já existia pelo fotojornalista ficou ainda maior.
“Ele para mim é um mestre de vida por encarar a vida como encara, a relação com fotografia, a postura dele como artista e mestre no ofício. Ele se tornou um amigo, alguém que eu admiro. Marcou minha vida em relação ao trabalho, minha personalidade e a maneira como vejo o mundo”.
Conrado ressalta que acompanhar Roberto nas fases do Alzheimer foi muito delicado e que nunca teve a pretensão de fazer um filme sobre isso.
“Na primeira vez que eu o vi admitindo que estava sentindo a doença foi em 2020. Envolve muito drama em perceber a evolução disso tudo. Ele sempre tratou do assunto de uma maneira muito bem humorada, sempre falou da própria morte. Em 2020 eu começo a me sentir ainda mais responsável por contar essa história de maneira delicada e respeitosa e de uma maneira que não resuma esse cara a doença. Ele está muito debilitado em 2024 para cá porque descobriu um câncer. Isso não entra no filme”.
O filme
O documentário fica pronto entre agosto e dezembro. Para mostrar o material aos campo-grandenses será feita a exibição em quatro sessões, ainda sem local definido. O projeto está na parte de montagem dos takes e preparo dos últimos detalhes.
Conrado explica que o documento demorou 12 anos para ser feito, primeiro pelas rotinas diferentes, segundo pela falta de incentivo público, que só chegou em 2024, quando o projeto conseguiu o subsídio da Lei Paulo Gustavo. O trâmite era para ter acontecido antes.

O cineasta sempre dividiu a vida entre São Paulo e Campo Grande, filho de pais separados, o translado era comum e durante as gravações não foi diferente.
“Comecei a fazer o filme e me mudei, consegui um emprego no Rio de Janeiro como diretor de fotografia na Rede Globo e voltava uma ou duas vezes por ano para cá para fazer o filme”.
A ideia em falar sobre o fotojornalista nasceu após o mestrado e um curso que ele ministrou, onde um dos exercícios propostos era pesquisar a vida e trabalho de Roberto Higa. “Na época ele estava com muita visibilidade, sempre teve mas estava com mais ainda. Quem sugeriu o filme foi a co-diretora, minha irmã de vida Debora Bah”.
Os dois cineastas e uma equipe formada por produtores, montagem, pesquisa e tudo o que é necessário para fazer um filme, mostram na tela um Roberto ainda desconhecido para muitos.
“O cara não deixa a peteca cair. Ele é super espirituoso, tem personalidade cativante, cara inteligente, perspicaz, tem a cabeça da sua época, um certo senso de humor meio mordaz. Tem um olhar sobre o mundo pragmático. Ele é o filho de uma época e representa um personagem fácil de traduzir. Traz isso muito dentro dele, daquilo que fez e fala, se apresenta para a sociedade”.
O enredo não tem cronologia. Conrado explica que a fotografia de uma bailarina de Campo Grande foi estopim para ideia de trazer uma musa da memória interpretada pela bailarina veterana Key Sawao. A personagem tem papel importante na trama, pois ela serve de ponte para acessar a memória do Higa.
“É algo mais visual e estético. Ela começa a seguir um caminho pelas memórias até encontrar o Higa na velhice. Ela é renomada, veterana de 60 anos e trazia semelhanças com o filme. Na última etapa de filmagem a gente trouxe a Key de São Paulo Para Campo Grande para conhecer ele. Dentro da poesia que a gente transforma o documentário”.
Também estão no documentário, a esposa do fotojornalista, Sandra Higa e a filha, Akemi Higa. Na ficha técnica Daniel Escrivano, Vitor Meyer, Alexandre Gwaz, Guilherme Cruz, Helton Pérez, Franciane Gonçalves, Rodrigo Teixeira e Debora Bah.
Rodolfo Ikeda participou da ideia original do filme junto dos cineastas Conrado e Debora.

Acompanhe o Lado B no Instagram @ladobcgoficial, Facebook e Twitter. Tem pauta para sugerir? Mande nas redes sociais ou no Direto das Ruas através do WhatsApp (67) 99669-9563 (chame aqui).
Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para entrar na lista VIP do Campo Grande News.