Na pele de um palhaço, Ligia descobriu como é se entregar a todo tipo de emoção
Lígia Prieto, que interpreta o palhaço Bagacinho, é uma das atrizes que encanta no palco e nas apresentações do Grupo Casa, em Campo Grande. Ao longo dos anos, tanto a relação com a arte, com sua identificação com a palhaçaria, tornaram-se ligações importantes na vida e na alma. Na alegria diária e no sapato apertado que lembra que a vida é dura e precisa de luta, ela descobriu um mundo cheio de emoções. Lígia compartilha hoje no Voz da Experiência a beleza que é fazer os outros sorrirem e a sabedoria em lidar com quem ainda se surpreende quando o palhaço é mulher.
Minha mãe era poeta. Meu pai sempre foi um artista, meu irmão ouvia Chico Buarque e Pearl Jam, e minha irmã começou a fazer teatro antes de mim, mas parou logo, e se manteve na poesia junto com minha mãe. Apesar disso os quatro escolheram ser dentistas. Então acho que vem de um berço bem quentinho, que ao mesmo tempo não entendia como isso poderia ser uma profissão. O que me fez da arte uma profissão ainda mais forte e cheia de luta, pois desde muito cedo tive que enfrentar as pessoas que eu mais amava, para lutar pelo teatro que eu acreditava. Sempre me reconheci artista e intrometida, sempre gostei muito de ler estudar gente, arte, literatura, romances, todas as histórias reais e inventadas me alucinavam e me alucinam.
Quando eu trabalhei no Rio de Janeiro, na Secretaria da Pessoa com Deficiência, como professora de Teatro, e logo depois como gerente de cultura de todas as unidades, entendi o teatro como essa possibilidade de existência, principalmente na vida de quem é “assujeitado”. Foi uma experiência que me fez juntar tudo, continuar com a luta pela arte como um fator essencial para o desenvolvimento humano e entender a importância da arte para fazer existir o sujeito barrado por uma sociedade hipócrita.
O teatro tem o poder de mudar as pessoas, de fazê-las forte, de fazer com que elas se olhem no fundo de seus próprios olhos sabendo quem é. Independe se elas serão atrizes ou atores, todas as pessoas desempenham milhões de papeis na vida e o palco não é diferente da vida. É preciso coragem para enfrentá-los.
O caminho da minha vida como atriz foi acontecendo, quando me dei conta não tinha outra saída, apesar de seguir com a formação em Psicologia, faço teatro há 15 anos e sempre trabalhei e me dediquei diariamente a ele. Com o palhaço o caminho foi junto. Para mim é um único processo, o caminho do ator, é de entrega, é de jogo, é o mesmo risco do palhaço.
O ator precisa se dominar, seus defeitos, suas graças, suas loucuras para poder estar em cena com sua incompletude. Para se dominar é preciso se conhecer. Não há outro caminho para o ator e nem para o palhaço se não esse, um encontro consigo mesmo. É uma aposta no jogo.
Em 2004 fiz um personagem, que se chamava "Infeliz", era a assistente do diabo, tinha uma maquiagem com o rosto manchado de vermelho e branco. Mas eu não enxergava, naquele momento, como um palhaço. Foi o meu primeiro contato com um lugar grotesco e livre, e pela sinceridade da entrega, também um primeiro contato com a graça acompanhada da sua graciosidade. Com esse espetáculo, que era da cia Fulano di Tal, há uns 13 anos atrás, participamos de alguns festivais, e em um desses, encontrei palhaços importantes no Brasil que me atravessaram de alguma forma pelo caminho da palhaçaria.
Os dias se passaram e segui meus estudos por mim mesma. Até que quando me mudei para o Rio de Janeiro, me dediquei a alguns cursos específicos de pesquisa, de comédia, de drama, e finalmente o que eu mais acreditava, foi o curso de “Palhaçaria para atores para acabar com a frescura”. O professor era o Fernando Lopes Lima, há quase 5 anos meu parceiro de vida. Era nisso que eu acreditava. Na importância de todo ator se entender palhaço. O palhaço sabe das coisas, é malandro, sabe de tudo e enxerga tudo como se fosse pela primeira vez, a entrega ao novo, ao risco, um salto de paraquedas.... e muito e muito e muito treino mesmo, para que tudo saia espontâneo e livre. A palhaçaria me acompanha em todos os meus personagens, em todos os meus dias. Na alegria diária, e no sapato apertado que me lembra que a vida é dura e precisa de luta.
Por ser mulher isso fez diferença? Totalmente. Isso é o tempo todo, não só no palhaço. Sou diretora e produtora geral do Grupo Casa, e as pessoas se referem com muita naturalidade ao Fernando, também diretor da cia, mesmo que no final das contas eu precise resolver as questões desejadas. Na palhaçaria não foi diferente. No caminho das pesquisas que tive dentro dessa área, no primeiro momento meu palhaço era completamente assexuado e hoje com o Bagacinho, ele é um menino levado.
Sempre me vi mais como um menino levado na vida, o fato é que era uma menina, fora dos padrões dessa sociedade machista. Poderia ser sim uma menina levada, mas quando iniciamos a Turma do Bagacinho, estávamos com um elenco masculino muito frágil ainda, e tínhamos meninas pra compor o outro lado, foi então que eu escolhi fazer o menino levado, o aventureiro.
Adoro viver o Bagacinho, é minha liberdade e minha genialidade. O Bagacinho é inteligente, é sagaz, é engraçado e é um moleque invocado. É vivido por uma mulher, todos sabem que é uma mulher por traz daquele nariz vermelho, mas fazendo um palhaço que é um menino.
Recebi milhões de desafios neste lugar. Eu quis ser o palhaço que fosse quem eu (mulher) quisesse ser... E a minha parte preferida da Turma do Bagacinho é ter uma mulher fazendo um palhaço aventureiro, além de todas as brincadeiras com os personagens. A proposta do Grupo Casa na Turma do Bagacinho, em quase todos os espetáculos, é a brincadeira da liberdade, os palhaços fazem personagens femininos e as palhaças fazem personagens masculinos, é disso que se trata.
Não podemos ter mais barreiras, precisamos nos livrar desse machismo e desse tradicionalismo que nos mata diariamente, a milhões de nós mulheres. A coisa mais importante é receber o depoimento das famílias, e das crianças depois, e ver que elas brincam em casa, na escola e na rua de serem quem elas quiserem ser. Se quiserem ser o garoto aventureiro, ou a princesa aventureira, ou a bruxa, ou o sapo, ou poeta, ou o narrador da história, elas serão. Porque os palhaços mostram para elas que essa realidade é possível, e precisa ser criada já.
Nessa última semana recebi duas mensagens lindas de duas crianças que acompanham a Turma do Bagacinho, as duas são meninas na faixa de 10 e 11 anos. Me disseram que querem ser iguais a mim quando crescerem, e que amam o Bagacinho. Que elas sejam quem elas quiserem ser, e sejam fortes. O Bagacinho faz o herói, faz o aventureiro, faz a bruxa, faz a fada, faz o romântico, ele é o Romeu, o Pequeno Príncipe, faz o Bagalicio e cai na toca do coelho onde tudo pode acontecer. Isso me faz acreditar num futuro mais justo. Que nossas crianças sejam livres. E que saibamos ser todos palhaços.
Mudanças - As transformações físicas não me trazem medo ou questões, nunca pensei duas vezes para raspar a cabeça. Isso começou , há quase 3 anos, quando eu ia iniciar o processo do Bagacinho, já cortei bem curtinho pra não precisar ficar fazendo mágica com o cabelo em todas as apresentações. Fui curtindo ele pequenininho.
Quando chegou a Rosaura, uma mulher forte, que sai de Moscou e vai até a Polônia para se vingar do “ladrão de sua honra”, para ela entrar no castelo precisava estar vestida de homem. Então, não pensei duas vezes, entrei no banheiro, peguei a máquina de barbear dos meninos da cia, e passei no 2. Foi uma sensação estranha e libertadora ao mesmo tempo.
A vaidade passa longe do ator, longe do palhaço, o que importa é um corpo pronto pra enfrentar o personagem que vier, em toda sua essência e loucura. Se for pra ser mais ou menos nem tem graça. A vida tem graça quando a gente vive por inteiro. E meu cabelo cresce rápido demais, já tenho o achado comprido.