Surpresas na música não foram nada boas no ano em que demos 2 inesperados adeus
Dois ícones da música produzida aqui nunca se cruzaram até a despedida, em 2015. Dias 16 de fevereiro e 25 de dezembro. Carnaval e Natal em duas datas que Campo Grande sentiu outro ritmo. O do choro da despedida, o da terra caindo sobre o caixão. No início do ano, o adeus inesperado foi dado a Renato Fernandes. E recentemente, foi a vez de Geraldo Roca tomar partida. Do blues ao worldmusic, perdemos nas duas pontas os maiores compositores do País.
A chuva chorou no último blues de Renato. Assim como sua música: "Quando será o meu último blues? Onde será o meu último blues? Será na mesa de um bar? Será numa noite de lua? Será que a chuva vai chorar no meu último blues?"
Renato se sentiu mal, foi levado ao posto de saúde. Lutou até com a morte. Foram quase 10 paradas cardíacas e uma sequência de tentativas de reanimá-lo. Ele morreu de infarto, o segundo que o pegou e o levou daqui no meio dos planos de voltar a se apresentar com a primeira banda: "Blues Band".
Ex-vocalista do "Bêbados Habilidosos", a banda anunciou o fim quando estava para fechar o quarto CD, depois de 24 anos como referência do blues no Estado. Renato viveu muito, mesmo indo embora tão cedo, aos 53 anos.
Ironicamente, eles nunca se cruzaram, mas tinham semelhanças nas letras, não no estilo, mas na verdade do que queriam passar. Autênticos, conseguiam criar poesias que chegavam a ser autobiográficas. Ambos tinham um talento puro na escrita e no canto.
Renato montou a primeira banda na década de 90. Tocava o que queria e para se divertir.
"Quem quiser saber de mim
vai me achar num botequim
entre um trago de whisky
ou uma dose de gim
O céu ou o inferno?
Amor ou solidão?
Pra quem já vendeu a alma tanto faz a direção"
Assim como ele, Geraldo Roca também falava por metáforas. Conseguia colocar simplicidade, objetividade e poesia na mesma harmonia. Morreu sem nunca entender a popularidade de uma das suas maiores canções: Trem do Pantanal. Mas Geraldo ia além: "Uma pra Estrada", "Japonês tem 3 filhas", "Mochileira", "O Rio Paraguai".
Os dois se cruzaram também no mesmo objetivo, ou melhor, na ausência dele. Nunca buscaram sucesso ou reconhecimento. Geraldo cometeu suicídio em casa. A cena trágica caberia bem em uma letra tanto dele mesmo, quanto no blues de Renato. Roca não era músico de um gênero só. Transitava pelo rock, folk, pela polca, pelo regional e a música da fronteira.
Além das influências musicais, carregava nas letras o que lia, o que pensava. Trem do Pantanal, por exemplo, vai além da paisagem vista na viagem. "Um amigo meu era de uma organização política e foi em cana. Fugiu, se mandou e veio por aqui. Quando voltou, me contou essa história e eu fiquei com aquilo na cabeça... De que o medo viaja também...", disse Roca em entrevista ao Roda Viva MS no início dos anos 2000.
Ele guardava muito e por muito tempo ideias, temas, frases e histórias na cabeça. No mesmo programa, recorreu a Carlos Drumond de Andrade para justificar que convivia com isso por dois anos até por para fora, no papel. O processo de trabalho era elaborado, demorado, pensavo.
"Num momento, tive uma ideia de como seria aquela canção e convivo com esse momento mentalmente 1 ano e meio", dizia. Drumond indicava que se convivesse com os poemas por até dois anos. Amadurecimento de ideias talvez?
Renato e ele se cruzam pelo menos num artista que era referência aos dois: Bob Dylan, citados por eles. Roca no programa Roda Viva, Renato no documentário "Ele é o blues".
Na mesma entrevista na TV Educativa, Geraldo elogia bandas regionais, dizendo que ouvia e gostava do Bando do Velho Jack e Bêbados Habilidosos, ambas ligadas a Renato Fernandes.
Compositor, chegou a dizer que preferia criar a cantar. Que criando era repórter de si próprio.
Eles se cruzaram na morte não só por 2015, mas porque precisaram sair de cena para serem descobertos por quem ainda não os conhecia ou não os relacionava às maiores composições nacionais. Dois compositores únicos que escolhiam a dedo as palavras para retratar o que nem sempre foi doce deste lugar.
O ano de 2015 nos deixou mais pobres, com duas baixas de peso na música brasileira.
"O encanto se foi
Mas você diz acreditar
No bem, na revolução,no amor,
No pé na estrada, no zen
Sua vida é um trem indo embora
Trens, estradas, cidades
Que a mim já não empolgam meu bem
A minha alma adoece
No Rio ou no Nepal
O meu mal nenhuma certeza
o seu mal é certeza total".