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Artes

Triste, mas não surpreso, escultor já tinha alertado sobre vandalismo

"Difícil de imaginar alguém agredir uma figura como Manoel de Barros", diz escultor Ique Woitschach

Paula Maciulevicius Brasil | 19/04/2021 13:11
Manoel de Barros amanheceu sem um dos pés; vandalismo aconteceu no final de semana. (Foto: Kísie Ainoã)
Manoel de Barros amanheceu sem um dos pés; vandalismo aconteceu no final de semana. (Foto: Kísie Ainoã)

Entristecido, foi logo na manhã desta segunda-feira (19) que o escultor Ique Woitschach foi informado de que a estátua de Manoel de Barros tinha sido vandalizada. De ontem para hoje, o pé esquerdo de Manoel foi arrancado e furtado do local onde o poeta está nos últimos três anos, na avenida Afonso Pena.

Ique ainda não acredita que em uma cidade como Campo Grande, diferente do Rio de Janeiro que tem todo um histórico de violência, há quem consiga fazer mal a uma figura tão doce quanto Manoel de Barros.

Com uma obra que eleva a gente como seres humanos, é difícil de imaginar que alguém consiga agredir uma figura como Manoel de Barros, o que me entristece mais, não pela minha obra, porque ela é só uma ferramente para elevar a obra de Manoel", diz ao telefone.

Com quase 400 quilos, estátua ocupa lugar central na cidade desde dezembro de 2017. (Foto: Kísie Ainoã)
Com quase 400 quilos, estátua ocupa lugar central na cidade desde dezembro de 2017. (Foto: Kísie Ainoã)
É o escultor Ique Woitschach que assina a obra de Manoel; registro de 2017, quando estátua foi "inaugurada" (Foto: Arquivo/André Bittar)
É o escultor Ique Woitschach que assina a obra de Manoel; registro de 2017, quando estátua foi "inaugurada" (Foto: Arquivo/André Bittar)

Com a arte cada vez sendo menos valorizada, Ique conta que fez a estátua justamente para que a figura do poeta das miudezas e das coisas simples não fosse esquecido.

"Me entristece muito, mas não me surpreende esse vandalismo, porque arte não tem nenhum valor, nunca teve, nem vai ter e, as políticas públicas com relação à arte e ao artista cumprem um protocolo político, mas a arte, o potencial da arte não é nem minimamente usado na formação da sociedade, por isso não me surpreende, como a arte é abandonada obviamente aconteceria alguma coisa com a escultura", declara.

O artista recorda que inclusive já havia sinalizado o poder público sobre a necessidade de instalar câmeras de segurança e iluminar melhor a área. Há cerca de um ano e meio, antes mesmo da pandemia, Ique soube que os óculos do poeta vinham sendo vandalizados sistematicamente.

"Na última vez em que estive em Campo Grande, há dois anos, tinha constatado rachadura nos óculos em dois pontos da armação. Toda noite alguém martelava, esse vandalismo já vinha acontecendo e eu já tinha falado com autoridades públicas e avisando que isso viria a acontecer", ressalta.

Ique defende que a ação não foi feita por nenhum dependente químico ou vítimas da miséria que está presente nas ruas, mas se trata de uma narrativa política. "Quem está na rua não tem instrumento para fazer o que foi feito. Ali precisa de instrumento profissional ou de ação mecânica, de amarrar aquele pé no parachoque de um carro. Você tem ali uma ação exclusivamente política", frisa.

Em tempos de pandemia, até estátua usava máscara (Foto: Arquivo/Paulo Francis)
Em tempos de pandemia, até estátua usava máscara (Foto: Arquivo/Paulo Francis)

Pesando aproximadamente 400 quilos, a escultura em bronze foi montada em dezembro de 2017 em comemoração aos 101 anos de Manoel. O escultor diz que não sabe que instrumento pode ter sido usado para a amputação, mas que se foi força mecânica, por exemplo, pode ser gerado outros pontos de ruptura na peça.

"Sinalizei lá no início, eu avisei: coloquem uma câmera de segurança e iluminação, que se pelo menos não evitasse de isso acontecer, a gente já teria como saber quem foi e procurar as razões e penalizar o autor, mas nada foi feito. É um patrimônio público e não foi feito nada", pontua.

Para Ique, a figura do poeta mais importante deste País teria que ser muito cultuada, preservada e cuidada. Também deveria ter se tornado ponto de referência artístico e cultural na cidade. "E ele foi simplesmente largado lá, como toda arte é", completa.

Nem Prefeitura nem Governo do Estado tinham entrado em contato com o escultor até 12h de hoje para conversar sobre uma restauração. Ique elenca que além do trabalho ser complexo, é preciso uma vistoria no local para análise técnica do que aconteceu e se há outros danos.

O escultor já sabe que o nariz está amassado, o caracol não tem mais antenas, o passarinho está torto e com o rabo fissurado. E se nada for feito, no sentido de dar segurança ao poeta, as amputações e furtos devem continuar.

"Vão tentar arrancar o outro pé, a cabeça, se nada for feito, isso vai acontecer e eu espero que o poder público tome medidas que não sejam só paliativas, não só de restauração da peça, mas do tratamento da obra, Vai precisar de uma boa vontade política", diz.

Estátua sendo inaugurada em dezembro de 2017, no endereço até onde fica (Foto: Edemir Rodrigues)
Estátua sendo inaugurada em dezembro de 2017, no endereço até onde fica (Foto: Edemir Rodrigues)

Restauração – O processo de restauração é complexo porque não existe um outro pé da estátua. Para repor, o escultor terá de modelar novamente, tirar a forma até ir para o forno ser feita a fundição do bronze para, por fim, soldá-lo na estátua.

"Vou ter que levar uma equipe daqui para fazer essa solda, que entenda desse tipo de metal. Depois de fazer o pé, a peça recebe um novo banho, uma revitalização e restauração em todos os pontos. É um trabalho, só de restauração em Campo Grande, de pelo menos 15 dias", estima.

Num processo sofisticado, a escultura em bronze leva tempo e toda uma equipe envolvida. Além de exigir as medições exatas do pé que ficou em Manoel. "Vai demandar vontade política, em primeiro lugar, para que isso aconteça, porque o trabalho de restauração é complexo e só o autor pode fazer", enfatiza.

O local onde a estátua está, em plena Avenida Afonso Pena foi uma escolha do próprio escultor para que Manoel estivesse no próprio quintal, rodeado das plantas que gostava e que tinha por perto quando vivo.

"Ali não é só a escultura, é um projeto de todo quarteirão que foi preparado, mas não houve essa leitura", esclarece.

No Centro da cidade também seria uma forma de deixar a figura do poeta acessível para a maioria da população, além de não ficar tão vulnerável a ataques. "Você coloca um canto escondido, ela fica vulnerável e em um museu, você limita justamente o público que Manoel trata na poesia dele. A lembrança da figura dele tem que ser em tempo integral", defende o artista.

No entanto, Ique fala que se nada for feito para que o local seja mais visitado e também monitorado por câmeras de segurança, além de receber iluminação adequada, o vandalismo pode continuar. "Não adianta restaurar se isso não for feito".

Autoridades – A Prefeitura Municipal de Campo Grande disse que por enquanto a Guarda Municipal está tentando identificar os vândalos no sistema de monitoramento. O diretor-presidente da Fundação de Cultura do Estado, Gustavo Castelo, o Cegonha, disse que o primeiro procedimento é o de registrar um boletim de ocorrência e solicitar providências da polícia na identificação do autor.

"Na sequência vamos abrir procedimento interno para solicitar a restauração da obra, e na sequência, entrar em contato com o Ique para solicitar o orçamento", explicou Cegonha.

Como a obra fica em local aberto, o diretor da Fundação de Cultura fala que não tem como garantir segurança da obra sem apoio da Guarda Municipal nas rondas pela região. "Vamos reforçar o pedido junto a Guarda e a Polícia para que isso não aconteça mais", finalizou.

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