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Comportamento

“Acessar espaços e hackear lugares” são sonhos de pessoas trans em MS

Enquanto estatísticas mostram cenário ainda cruel, homens e mulheres trans de MS revelam o que sonham

Por Thailla Torres* | 30/01/2024 08:37
Geovanny tem o sonho de fazer de seus desenhos tatuagens. (Foto: Paula Maciulevicius)
Geovanny tem o sonho de fazer de seus desenhos tatuagens. (Foto: Paula Maciulevicius)

A semana é dedicada ao Dia da Visibilidade Trans (29 de janeiro), portanto, resistir, sobreviver e militar são os verbos de ação de quem carrega nas costas as cores da bandeira. Enquanto as estatísticas mostram um cenário ainda cruel, homens e mulheres trans de Mato Grosso do Sul revelam o que sonham para além da visibilidade.

Acompanhado da mãe, um adolescente de 17 anos, narra a própria história de transição, iniciada há pouco mais de 1 ano. O sentimento de “inadequação” vivido por ele durante a infância e a adolescência encontrou motivação quando ele passou a ler sobre o tema até se identificar como homem trans.

Prestes a completar 18 anos, tendo de enfrentar o último bimestre do 3º ano do Ensino Médio em regime domiciliar por falta de acolhimento da escola, o adolescente descreve que se sentiu ele mesmo quando amigos, a mãe e as pessoas mais próximas passaram a lhe chamar pelo pronome certo e o nome escolhido.

Ao lado da mãe, sonho de adolescente trans é ter visibilidade além do calendário. (Foto: Matheus Carvalho/SEC)
Ao lado da mãe, sonho de adolescente trans é ter visibilidade além do calendário. (Foto: Matheus Carvalho/SEC)

Chamado de “presente de Deus” pela mãe, desde o nascimento, o estudante sonha em viver a visibilidade trans mais do que no calendário. “Eu espero que um dia, todas as novelas tenham pelo menos um, dois, três personagens trans, e que essa visibilidade seja, de certa forma, em todos os ângulos: na TV, numa empresa, no escritório. Espero que as pessoas trans tenham oportunidade de estarem presentes em todos os âmbitos sociais da escola, do trabalho e da cultura”, sonha.

“Começar no ramo da tatuagem”

Agente de call center, Geovanny Guedes vive o primeiro Dia da Visibilidade Trans. Quando em 2004 o grupo ocupava Brasília, ele tinha um mês de vida. Foi em 2023, no ano em que faria o 20º aniversário, que ele se “aceitou”, como assim classifica.

“Eu sempre soube quem eu era, mas fingia que não para tentar me enquadrar nos padrões e isso me doeu muito. Em fevereiro do ano passado, me assumi, quer dizer, me aceitei. Foi o momento de ser feliz, de encarar que sou assim”, conta.

A transição ocorreu em paralelo às atividades profissionais de call center, onde um dos serviços oferecidos pelo Centro Estadual da Cidadania LGBTQIA +, o alcançou. A empresa recebeu uma roda de palestras sobre os significados das nomenclaturas utilizadas na sigla LGBTQIA+, leis e decretos, além de ter sido ponto de atendimento para informar sobre a modificação de nome e gênero no registro civil, e a emissão de carteirinha de nome social.

“Foi de uma importância muito grande essa ação, porque às vezes a gente pode até perder a vontade de trabalhar, imagina estar num local onde as pessoas não te respeitam? É uma sensação muito ruim”, relata.

Neste primeiro Dia da Visibilidade, Geovanny fala que esta é uma data para se inspirar. “Não é um dia que passou batido, é um dia de história e de lembrar que a gente existe sim, mesmo quando não é visto na sociedade”.

Entre os sonhos, o jovem quer se profissionalizar como tatuador. “Começar no ramo da tatuagem, eu gosto de desenhar e queria focar nisso. Comprei as coisas e estou treinando em casa, tenho que fazer curso e me especializar, mas o que eu sonho é desenhar, gosto de estar ali, desenhando na pele, fazendo o decalque”, narra.

“Acessar espaços, hackear lugares”

Afro Queer vive o hoje, de trabalhar com o que ama e sonha em abrir espaços para o futuro. (Foto: Kaique Andrade)
Afro Queer vive o hoje, de trabalhar com o que ama e sonha em abrir espaços para o futuro. (Foto: Kaique Andrade)

Mediadora e produtora cultural, professora de Artes da rede pública, Emy tem 24 anos de vida e pouco mais de cinco de militância. Foi na graduação que ela passou a se entender melhor e lutar pelos seus direitos.

Conhecida como Afro Queer, os sonhos da travesti estão atrelados a viver da arte e ocupar espaços hoje e amanhã.

“Acredito que o que define a data da Visibilidade seja tecnologia trans. A gente vive dentro desse sistema, e é inegável a violência o que ele acarreta às nossas vidas, mas, também ao longo dos anos a gente vem desenvolvendo uma tecnologia de vivência mesmo, de acessar os espaços, hackear estes lugares, começar a ocupar e atrelado a isso eu penso no futuro. Porque o futuro é amanhã, mas também é hoje”, reflete.

Comemorar o Dia 29 de Janeiro é celebrar a vida, a saúde, e os caminhos. “Para além de tudo, o agora, eu estou viva, estou bem, trabalho com o que amo, vivo da minha arte, do que essa coletividade me propôs. Reverencio a quem veio antes, e quero projetar vidas para o futuro”.

Baseada na ideologia de Beyoncé, Afro Queer explica que quando não se tem porta, é preciso criá-la. Este é o mesmo propósito do Coletivo Trans pra Frente, que reúne sete pessoas trans unidas pela arte e pela necessidade de criar e produzir em espaços onde todos se sintam acolhidos e seguros.

“O Trans pra Frente é um marco, nunca houve um movimento como este. Antes estávamos nesse lugar de entretenimento: ‘vamos chamar para fazer uma coisinha’, mas não. A gente vive disso, a gente quer viver disso, que é arte, é estudo”.

“Ano que vem vou fazer 60, com muito orgulho”

Trans sobrevivente, Cláudia vive o sonho de chegar aos 60 anos, superando a expectativa de vida no País. (Foto: Álvaro Rezende)
Trans sobrevivente, Cláudia vive o sonho de chegar aos 60 anos, superando a expectativa de vida no País. (Foto: Álvaro Rezende)

Ter ultrapassado em 15 anos a expectativa de vida de uma mulher trans no Brasil é motivo de orgulho e de luta para Cláudia Assunção Pompeu. Douradense, militante há duas décadas, e acima de tudo uma sobrevivente.

Com vestido rosa, brincos de crochê nas cores de arco-íris, ela pega o microfone para cobrar, diante da Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, políticas públicas para mulheres trans e travestis, que vão muito além do contexto de violência doméstica.

O empenho visto na fala de Cláudia não se resume a pegar um microfone. Vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Dourados, ela conta em uma só mão quantas trans ocupam cargos públicos ao seu redor.

“A cada 30h uma mulher trans é assassinada no Brasil. Eu sou uma resistência na nossa cidade e em Mato Grosso do Sul. Faço valer os meus direitos, não aceito não. As mulheres trans e travestis têm expectativa de chegar até os 35 anos, porque nós morremos bem antes. Eu já passei dessa estatística, passei de meio século e com saúde. Tenho orgulho de falar que ano que vem vou fazer 60”.

Direitos em MS

O subsecretário de Políticas Públicas para a População LGBTQIA+, Vagner Campos, ressalta que Mato Grosso do Sul acredita na construção coletiva das políticas públicas, e tem trabalhado para fazer das conquistas dos movimentos sociais a garantia de cidadania.

“Espaço como este, de construção coletiva, é o caminho correto. É importante a gente somar nos espaços, somar às autoridades. É uma luta grande que estamos fazendo até hoje para dizer: ‘nós vivemos, nós existimos e nós queremos respeito’”.

Na vanguarda da garantia de direitos à população LGBTQIA+, Mato Grosso do Sul, além de ser o primeiro Estado do País a criar uma Subsecretaria voltada ao tema, MS tem legislações  desde 1995, como o decreto que estabeleceu a obrigatoriedade de incluir a matéria “Orientação Sexual” nos currículos das Escolas Estaduais.

Em 2005, o Estado sancionou a Lei nº 3.157, que determinava as medidas de combate à discriminação devida a orientação sexual no âmbito de todo MS, complementada logo depois com a obrigatoriedade da disciplina de relações de gênero nos cursos de formação de policiais civis, militar e bombeiros, para combater à LGBTfobia.

Em 2006, o Estado cria em conjunto com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, o então Centhro (Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate à Homofobia) para o desenvolvimento das políticas de defesa de direitos e da cidadania do público LGBT+, incluindo atendimento psicossocial e jurídico.

Também proveniente de legislações estaduais, em 2013 foi regulamentada a união homoafetiva e uniformizados os procedimentos do casamento civil homoafetivo, Provimento nº 80, e Decreto nº 13.684, respectivamente.

Um ano depois, o Estado sanciona a Resolução nº 141, de maio de 2014, que estabelece procedimentos para a confecção e entrega de Identificação por Nome Social e ainda publica o Decreto nº 13.954, que padroniza o modelo da carteira de identificação por nome social, uma conquista muito significativa que permite o reconhecimento de transexuais e travestis pelo nome com o qual se identificam.

De 1995 para 2023, o Estado atualizou dispositivos, homologou propostas de conferências LGBTQIA+, criou a Subsecretaria de Políticas Públicas LGBTQIA+, instituiu datas, conselhos e comitês, estabeleceu parâmetros de acolhimento em ambientes socioeducativos e criou a Comissão Especial Processante, ligada ao Centro Estadual de Cidadania LGBTQIA+.

Hoje, o Centro Estadual de Cidadania LGBTQIA+ oferece orientação para retificação de nome e/ou gênero no registro civil, carteira de identificação por nome social (CNS), registro de denúncia, encaminhamento para defensoria pública, acolhimento, orientação e encaminhamento psicossocial.

Para atendimento, a população trans e travesti pode procurar o Centro na Avenida Fernando Corrêa da Costa, 559 - Centro, e pelo telefone:  (67) 3316-9183.

* Com Paula Maciulevicius - jornalista na Secretaria de Estado da Cidadania 

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