Casal viu festa centenária ser feita à base de água no balde e lampião
Luzia de Arruda e Sérgio Antônio relembram como eram as primeiras festas de São Benedito na comunidade Tia Eva

Casados há 63 anos, Luzia de Arruda Silva, de 83, e Sérgio Antônio da Silva, de 89, são memória viva de uma tradição que resiste. Na comunidade Tia Eva, eles relembram os primeiros passos das festas de São Benedito, quando a fé se acendia como a chama dos lampiões, e a água era puxada no balde. Neste ano, os descendentes da fundadora da Capital celebram a 106ª edição dessa festa centenária. Hoje, o evento tem mais estrutura. Mas lá no começo, o que sustentava a celebração era apenas a garra de um povo que sabia, mesmo na simplicidade, fazer da alegria uma forma de resistência.
O casal abriu as portas da casa com muro baixo e portão verde para contar que, mesmo com toda a precariedade, a festa era animada e cheia durante os nove dias de celebração. Devido a problemas nos joelhos, os dois se limitam a recordar sentados no sofá da sala.
Figuras importantes, como o próprio prefeito da época, desciam até a comunidade para festejar. Sérgio, conhecido a vida toda como Michel, é bisneto de Tia Eva. Ao Lado B, ele explica que, antigamente, as comidas eram doadas por fazendeiros.
"Eu trabalhei nesta comunidade desde os 15 anos. Comecei a ajudar meu avô nessa idade. Naquele tempo, a gente precisava sair e ir até as fazendas para pedir prendas. Não tinha salão de festa, não tinha nada, mas, se for fazer uma avaliação, antes tinha muito mais gente. Naquele tempo, os padres diziam que quem fazia festa agradava a Deus e ao diabo ao mesmo tempo. Então, acabava a missa e eles mandavam ir embora pra casa — mas a turma não ia", relembra, sorrindo.

Ele lembra que as prendas eram generosas: leitoas inteiras, galinhas e até vacas doadas para o abate na comunidade.
“Tudo o que a gente ganhava ia para o leilão. Fazíamos as festas, a água era tirada no balde para preparar as coisas. Quando acabava, a gente pedia para os guris encherem de novo. Era difícil fazer festa desse jeito, carregar água no balde não era fácil. Graças a Deus, depois conseguimos água encanada e também luz. Eu ajudei muita gente através das festas da Tia Eva”, conta.
Michel, como prefere ser chamado, relembra que a água só chegou depois de uma reunião entre os moradores e um pedido feito a um bispo que celebrava as missas na época.
“Pensamos em tentar pedir ajuda pra ele. Fizemos uma reunião e levamos o pedido. Ele disse que iria ceder a água pra gente. Com isso, conseguimos água encanada no Seminário I, conseguimos antes mesmo da Euler de Azevedo”, recorda.
A festa de São Benedito acontece no dia 10 de maio e mistura elementos religiosos com confraternização, almoço e celebrações culturais. Michel conta que Tia Eva não aceitava bar na porta da igreja e fazia questão de manter tudo separado. Naquele tempo, o salão onde hoje são feitas as comemorações ainda não existia.
“Era tudo misturado, ali perto da igreja, mas a vovó não aceitava o bar. Tinha barraquinha, ela alugava no terreno dela, mas nada dentro da área da igreja. Nós começamos a fazer as festas com um padre do Dom Bosco. As coisas foram mudando. A gente foi arrecadando dinheiro, um ajudando o outro, e construímos um salão sem depender do poder público.”
A festa de São Benedito é celebrada anualmente pela comunidade desde 1919 e vai além da simples homenagem ao santo devoto de Tia Eva. Ela representa um importante momento de confraternização entre diversas famílias descendentes, tanto aquelas que ainda vivem na comunidade quanto as que se estabeleceram em outros lugares. Além disso, também reúne comunidades quilombolas do Estado.
A esposa de Michel, Luzia, relembra com carinho da época em que a comunidade pulsava. Inclusive foi nas festas que ela conheceu o marido. Aqui as datas não têm muita importância e ela também não faz questão de lembrar.
“Depois da reza a gente vinha mexer com o salão. A gente fazia fogueira. Foi um sacrifício danado para fazer as primeiras festas de São Benedito, aqui era iluminado com lamparina. Mesmo na dificuldade a gente festejava. A gente ia no baile e dançava até amanhecer. Antes o que mantinha era a fé. Pessoal vinha de longe. Tinha promessa para cumprir. Hoje a fé não está como era. Antigamente tinha apresentação de catira, dança afro”.
Ela lamenta o rumo que a festa tradicional vem tomando ao longo dos anos, com esquecimento de coisas que faziam ela ser o que é. Segundo Luzia, agora há mais shows.
Conheci o Michel dançando no baile. Eu não morava aqui e minha mãe trazia a gente para dançar. Era o melhor lugar. Aí conheci ele, namoramos e casamos. Hoje a maioria só vem para dançar e ter o almoço no domingo que é de graça. Pessoal mais novo está muito sem fé”.

Esquecimento?
Tatiane Penha, de 42 anos, é secretária da Associação Beneficente dos Descendentes de Tia Eva e faz parte da organização da festa. Esse ano, eles esbarraram em problemas. Segundo ela, há pouco incentivo financeiro para a festividade que é tradicional há décadas. Para ela, mais uma vez a data é motivo de comemoração, luta, resistência e garra.
“Não está sendo fácil esse ano. Não estamos tendo muita ajuda. É registrado por lei que é uma das festas mais importantes do município. Está tendo dificuldade de encontrar até músico, ter ajuda com tinta para pintar o salão. Antigamente a gente pintava a igreja. Então não estou tendo muito apoio. É muito triste uma festa cultural tradicional assim, hoje temos que recorrer à comunidade para receber doações para o almoço que é feito de graça”.
De acordo com ela, cada um faz o que pode para ajudar. As reuniões com a prefeitura de Campo Grande estão acontecendo para definir alguns detalhes, mas há preocupação por parte dos moradores de que a festa seja esquecida.
“Estamos correndo para fazer a tempo. A cultura e a história vão se deteriorando. Na minha época tinha a apresentação de capoeira, o desfile de meninas negras, dança afro. Hoje não tem mais isso. Hoje as mães não deixam participar porque acham que a dança afro é candomblé. A maioria é evangélica. Ficou meio dividido. A cultura com o tempo apaga, na minha geração já está fraca e não tem mais esse movimento. Se não fortalecer as crianças, vai acabar”.
A reportagem entrou em contato com a prefeitura para averiguar o andamento da festividade e a falta de incentivo citada pelos organizadores e aguarda retorno.
Programação
Segundo Tatiane, a programação deste ano já está definida e conta com grupo de samba feminino, com os meninos do Pegada do Macaco, no dia 9 para abrir as comemorações. No dia seguinte, é a vez do sertanejo Henrique Souza e a dupla Guto e Gael. Já no dia 11 quem embala a festa é o Trio Violada.
No dia 18, o cantor Arthur Vilalva, e Robertinho Meneses sobe ao palco no dia 24 para fechar a festa.
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