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Comportamento

Depois da tentativa de suicídio, só o amor próprio salvou minha vida

“Talvez tenha sido necessário eu passar por algumas coisas para eu ter a cabeça de hoje, de não aceitar mais qualquer coisa”

Raul Delvizio | 23/09/2020 06:10
Olhos marejados, no Voz da Experiência de hoje. (Foto: Silas Lima)
Olhos marejados, no Voz da Experiência de hoje. (Foto: Silas Lima)

Exercitar a força interior requer um ato de coragem. Lucia* foi aprender o significado disso após enfrentar relacionamentos abusivos e sobreviver a uma tentativa de suicídio. E o que tudo isso a ensinou? Ser independente, praticar a autoestima, buscar o autoconhecimento e ter muito, mas muito amor-próprio.

No Voz da Experiência ela fala como decidiu segurar a mão de outras mulheres que, assim como ela, um dia viveu ou vive a dor.


"Meu nome é Lucia*, tenho 27 anos, sou mãe solo de dois filhos, um de 3 anos e o mais velho de 5. Minha história de relacionamento abusivo começou há 7 anos. Quando entrei na faculdade, conheci um veterano que viria a se tornar pais dos meus filhos. No início era tudo maravilhoso. Ele até já apresentava crises de ciúmes, mas eu achava que era porque ele realmente me amava. Foi tudo muito rápido. Ficamos noivos em 3 meses, casamos na igreja e já com 7 meses juntos eu engravidei do meu primeiro filho.

A primeira agressão física aconteceu em casa. Ele havia bebido muito. Foi mais uma briga de ciúmes – ele sempre foi muito inseguro. A gente começou a discutir e ele perdeu o controle. Saiu derrubando tudo que tinha na cozinha, quebrando as coisas. Peguei e me tranquei junto ao meu filho dentro do quarto. Mas antes, ele deu um tapão no meu rosto e me empurrou ao chão. Chamei a polícia, dei queixa, e fui parar na casa da minha mãe de camburão. Foi a maior vergonha que já senti.

Depois disso, voltei a morar com minha mãe. Ela implorava para que eu não voltasse com ele. Minha família sempre me apoiou muito. Mas com 1 mês de separação, resolvi dar mais uma chance à ele. Nisso engravidei do meu segundo filho. Ficamos casados mais 2 anos, entre idas e vindas, e outros traumas. Fui várias vezes na Casa da Mulher Brasileira pedir orientação. Fiz três medidas protetivas, todas que eu acabei abandonando.

"Chamei a polícia, dei queixa, e fui parar na casa da minha mãe de camburão. Foi a maior vergonha que já senti" (Foto: Silas Lima)
"Chamei a polícia, dei queixa, e fui parar na casa da minha mãe de camburão. Foi a maior vergonha que já senti" (Foto: Silas Lima)

Uma das situações foi uma confusão que ele causou na frente da loja onde eu trabalhava – e acabei perdendo o emprego. Era um final de ano, o shopping estava lotado de gente. Chegou todo bêbado, começou a gritar, me xingar. Quase foi pra cima de mim se não fosse um rapaz intervir.

Outro episódio foi a tentativa de enforcamento. Foi na casa dos pais dele, com todo mundo testemunhando. Naquele dia eu realmente pensei que ele fosse me matar. O pai dele tentava tirar ele de mim e quase não conseguiu, porque ele se 'transformava'. A mãe dele acabou pegando meu celular e me trancando na casa, só para que eu não chamasse a polícia. Ele era abusivo dentro de uma família que também já era abusiva.

E fora as coisas que ele fazia comigo enquanto eu dormia. Teve inúmeras vezes que eu acordei com ele em cima de mim. Um dia, em conversa com a delegada da Casa da Mulher, ela me perguntou se ele me abusava. Não consegui verbalizar, eu só chorava.

Depois disso tudo, com muita coragem, quando eu decidir pôr um fim, meu maior medo – e imagino que seja o de todas as mulheres – era dele vir atrás, não me deixar em paz. Mas graças à Deus isso não aconteceu.

Passado alguns meses, eu achei que eu estava bem. Mas aquele viria a ser o pior ano da minha vida. Estava morando novamente com minha mãe, grana apertada, e eu não queria ser um incômodo. Resolvi que alugaria uma casa só pra mim e meus filhos. Sempre fui muito ansiosa, nem ao menos sabia se um emprego na época daria certo – eu já ia abraçando tudo. Nunca faltou comida pros meus filhos, mas também não tinha conforto. Era só uma casa. Quem deixava de comer a mistura era eu, só para que eles se alimentassem melhor."


Tentativa de suicídio – "Foi numa segunda-feira. O mais velho teve uma crise brava de bronquite e nem dinheiro pra Uber eu tinha. O pai nem deu bola, sempre tinha uma desculpinha. Meu menino foi ficando com falta de ar, aquilo me deixando louca, ansiosa, fora tudo que já estava acontecendo. O vale-alimentação no meu trabalho foi negado, estava sem dinheiro, com aluguel para pagar, e não queria recorrer à minha família com problemas – me sentia um peso, inútil e muito, mas muito cansada.

Tomei 30 comprimidos de tudo que era medicamento que eu tinha em casa. Liguei para minha mãe, mandei mensagem para um bando de gente. 'Eu preciso descansar, cuidem dos meus meninos por mim'.

Tomei 30 comprimidos de tudo que era medicamento que eu tinha em casa. 'Eu preciso descansar, cuidem dos meus meninos por mim'" (Foto: Silas Lima)
Tomei 30 comprimidos de tudo que era medicamento que eu tinha em casa. 'Eu preciso descansar, cuidem dos meus meninos por mim'" (Foto: Silas Lima)

Dividia o quintal com uma vizinha amiga. Fui lá pra fora, como num último pedido de ajuda. Estava muito dopada. Ela me viu, e eu só apontei pras embalagens vazias. Ela entrou em desespero, o marido dela me pegou, tentaram os dois fazerem eu botar tudo aquilo pra fora. Nisso, meu filho mais velho estava dormindo no sofá enquanto o pequeno – sem entender nada – apenas passava a mão no meu cabelo.

Minha mãe veio correndo até minha casa, mas antes ligou para o Samu pedindo socorro. Eu não conseguia ficar mais de olho aberto. Lembro das sirenes e dos paramédicos, todos tentavam me manter acordada.

Quando cheguei na UPA, fui direto fazer a tal da lavagem com as enfermeiras. 'Meu Deus, o que eu fiz?'. 'Desculpa por isso, vai doer muito, mas você precisa viver'. Eu estava tão doente que eu realmente não tinha noção do que eu havia feito. Na minha cabeça, eu era uma mãe que não dava conta de nada, era uma mulher que nunca ia arrumar alguém por tudo que me tinha acontecido, era uma filha que só dava trabalho porque era ainda muito dependente.

O médico perguntou se eu me arrependia do que eu havia feito, e eu respondi que sim, mas que tinha medo de fazer de novo. Ele foi categórico: 'você não vai fazer isso de novo, olha quanta gente tá aqui por você, que te ama'. Era verdade. Todos mundo que importava estava ali por mim. Até meu pai – que eu nunca tive uma boa relação – também estava lá junto à minha mãe, segurando minha mão, me dando força.

"Até meu pai – que eu nunca tive uma boa relação – também estava lá junto à minha mãe, segurando minha mão, me dando força" (Foto: Silas Lima)
"Até meu pai – que eu nunca tive uma boa relação – também estava lá junto à minha mãe, segurando minha mão, me dando força" (Foto: Silas Lima)

Recebi alta, comecei a fazer o tratamento em casa. Tive que confiar ao meu ex-marido a guarda provisória das crianças. Só via meus filhos a cada duas semanas. Não sabia como eles estavam sendo cuidados. Passado 9 meses, eu já estava bem melhor, mas meu ex afirmou que não iria devolver as crianças, e que era melhor eu conversar pelas vias jurídicas.

Havia um processo legal rolando eu não sabia de nada. Eu só rezava. Fui para um acampamento de igreja e lá conheci uma campista que era advogada da família. Confidenciei toda minha história. Ela disse que faria questão de pegar meu caso, e que ganharia. Dito e feito. O juiz não analisou a minha tentativa de suicídio isolada, mas todo o contexto abusivo e da falta de comprometimento familiar do pai. Eu nem queria que ele assumisse a paternidade, só queria meus filhos de volta pra mim. E hoje já tenho a guarda unilateral dos dois.

Veio a pandemia, e eu só via o aumento do número de casos de violência doméstica. Resolvi criar um perfil no Instagram, voltado às minhas experiências. 'Você usa sua tragédia para se promover'. Errado quem pensa isso, quero apenas ajudar essas mulheres. E todas elas também me ajudam. A Lucia* que tá lá é a de exemplo maior, então nunca poderei aceitar menos do que eu mereço. Minha mãe até me questionou se eu não iria ficar remoendo essas feridas. Não é fácil, é verdade, mas eu sabia que de alguma forma teria essa força a mais. É o tal do #girlpower.

Só pelas minhas experiências é que eu pude perceber a minha carência em tudo. Hoje, fazendo terapia, eu entendo que eu tentava ajudar mais ao meu ex do que a mim mesma. Queria que o casamento desse certo, queria que meus filhos tivessem um pai."

"Quando tudo for pedra, atire a primeira flor", declara Lucia*. (Foto: Arquivo Pessoal)
"Quando tudo for pedra, atire a primeira flor", declara Lucia*. (Foto: Arquivo Pessoal)

Aprendizado – "A gente tem que se amar muito mesmo. E precisamos aprender a nos retirar quando algo não nos serve. Quando buscamos nos conhecer, é que podemos nos respeitar de verdade. Cuidar de si em primeiro lugar. Não adianta filhos, marido, emprego, saúde, dinheiro. Nada vai fluir legal se você não se tem enquanto de importância. Hoje eu me amo a ponto de saber o que eu quero ou deixo de querer.

E tenho um projeto a longo prazo. Quero estar bem um dia financeiramente para montar um espaço, não como um abrigo, mas um centro de apoio, fazer algum tipo de atendimento. Como não sou profissional na área, já me inscrevi num EAD em serviço social, justamente para buscar essa base. Além de exercitar o amor-próprio, minha autoestima, e me conhecer sempre. Me ter em alta consideração."


Tem alguma experiência transformadora? Conte para o Lado B, pode ser pelas redes sociais Facebook e Instagram, ou então via e-mail: ladob@news.com.br.

"A gente tem que se amar muito mesmo. E precisamos aprender a nos retirar quando algo não nos serve. Cuidar de si em primeiro lugar", diz (Foto: Arquivo Pessoal)
"A gente tem que se amar muito mesmo. E precisamos aprender a nos retirar quando algo não nos serve. Cuidar de si em primeiro lugar", diz (Foto: Arquivo Pessoal)

*Lucia é um nome fictício criado pela redação para preservar a identidade da personagem e também de terceiros.

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