Diariamente, mãe 'grita' para mostrar que indígenas surdos existem
De projetos de pesquisa e capacitação até história em quadrinhos, movimento é longo em MS
De ver o filho ser negado na escola até entender que a luta é coletiva, Ondina Antônio Miguel garante que precisa “gritar” para mostrar que indígenas surdos existem, possuem sua própria língua e necessitam de visibilidade. Em Mato Grosso do Sul, o cenário é detalhado de várias formas, indo desde depoimentos pessoais, pesquisas em universidades, projeto piloto para capacitar professores nas aldeias até história em quadrinhos em língua indígena de sinais.
Indígenas da etnia terena da aldeia Cachoeirinha, em Miranda, Edmara Antônio Miguel e Ondina Antônio Miguel narram um pouco sobre as vivências de sua família. Além de Edmara, que não é surda, Ondina explica que tem três filhos surdos e as lutas são diversas.
Eu descobri a surdez do mais velho, o Elcio, quando ele completou os seus 2 aninhos. Depois veio o Everton e descobri que ele era surdo quando completou 1 ano e 6 meses,. Percebi pois ele começava a apontar as coisas que ele queria fazendo sinais com as mãos para se comunicar. E a outra, Maria Eliza, aconteceu a mesma coisa quando completou 1 aninho. Minha mãe pensou que a Maria Eliza estava imitando os outros irmãos, então a levou para morar com ela durante 2 anos, depois a Maria Eliza voltou a morar conosco, diz Ondina.
Chegando aos 7 anos de idade, Elcio começou a estudar na escola na aldeia e, desde então, tudo ficou ainda mais intenso. “Toda tarde ele se arrumava e pegava o saco de arroz em que ele carregava os seus caderninhos, já que naqueles dias eu não tinha condição de comprar uma mochila para ele, e ia para escola sempre contente. Ele sempre gostou de estudar. Depois de 3 dias frequentando a escola, a professora dele me chamou e então me disse que não tinha condição de dar aula para o meu filho. Fiquei muito triste ao saber que meu filho não podia estudar mais”.
De acordo com a mãe, no dia seguinte o filho não foi mais para escola, “ele chorou bastante e o meu coração se despedaçou de tristeza ao ver ele chorando e querendo estudar”. Após quatro anos, com ajuda de freiras na cidade, Ondina encontrou uma escola que recebeu seus três filhos.
“Eu, como mãe, continuo batalhando por eles, para que eles continuem estudando e realizem seus sonhos. Eu não perco as esperanças porque sei que eles são capazes. Eles dependem muito de mim, já que sou falante de quatro línguas: Língua Terena, Língua Portuguesa, Língua de Sinais em Terena e Libras. Eu não tenho vergonha de ser indígena e não tenho vergonha de falar a Língua Terena. Infelizmente, os meus filhos sofrem muito preconceito por dois motivos, por serem indígenas e surdos, mas mesmo assim eles também não desistem de lutar pelos seus direitos”.
E, para manter essa luta, a professora diz que grita e pede por socorro, “para a sociedade enxergar eles como pessoas e dar mais valor e oportunidade, principalmente nos estudos deles”.
Tendo realizado dois encontros dos surdos terena, Ondina explica que enfrenta problemas de saúde, mas deseja realizar o terceiro neste ano.
"Com esses encontros anuais, quero mostrar para minha comunidade quem são os surdos, o valor que eles têm e mostrar que eles são capazes de fazer qualquer coisa que quiserem. Eles cantam com as mãos, eles ouvem com os olhos, podem dirigir, dançar, jogar bola, se divertir, fazer tudo", diz a mãe.
Sobre o cenário em geral, Edmara, também filha de Ondina, conta que inicialmente a família só usava a língua terena de sinais em casa. “No início foi difícil para nós da família quando eles queriam falar alguma coisa para gente, eles apontavam as coisas para gente entender, daí com o tempo eles foram ensinando os sinais para nós e nós fomos aprendendo”.
Hoje, já habituada às línguas sinalizadas, ela explica que assim como ocorre com as línguas faladas e escritas, há um medo do desaparecimento. "A língua de sinais deve ser compartilhada, registrada para que não desapareça. É a mesma coisa do que a língua terena, nós temos muito medo de perder nossa identidade".
Do cenário não-indígena ao indígena
Pedagoga, mestre em Linguística, doutoranda em Linguística Aplicada Dinter Unicamp/UFMS, professora da UFMS e escritora surda, Shirley Vilhalva atua na área da educação dos surdos e explica sobre como a trajetória no campo é profunda.
“Fui professora do Ceada (Centro de Atendimento ao Deficiente da Audiocomunicação), Profissional da SED/MS e do CAS (Centro de Capacitação de Profissionais da Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez), estive na Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos, então fizemos o cenário da língua de sinais. Estou ativa desde 1983 nos movimentos surdos, então são praticamente 40 anos”.
Narrando sobre o cenário em Mato Grosso do Sul, Shirley detalha que Mato Grosso do Sul é referência quando se trata de projetos para pessoas surdas, com deficiência auditiva e surdacegas. Exemplificando, ela comenta que o Brasil reconheceu Libras como meio legal de comunicação e expressão apenas em 2022, enquanto MS fez isso em 1996 e Campo Grande em 1993.
Em relação ao que notou em sua trajetória, a professora comenta que nas décadas de 1980 e 1990, pensar que uma pessoa surda seria professora era algo quase inimaginável. “Era muito mais fácil entender qualquer outro tipo de deficiência do que os surdos porque outras pessoas com deficiência são ouvintes, assim, são semelhantes ao restante da população”.
Por dividir sua história com a da área, Shirley pontua que a luta pelos direitos não é algo novo em sua família.
Muitas vezes a gente não sai de casa com a língua de sinais, mas esse não é meu caso. Na minha família, nasceram 12 surdos durante 70 anos, então meu caso é hereditário e essa questão de lutar é porque tive pessoas que lutaram antes de mim, então aprendi. É diferente de um surdo que está sozinho devido sua família não saber a língua de sinais, explica Shirley.
Especificamente sobre o cenário de educação e a língua de sinais dos indígenas surdos, ela explica que os alunos têm direito pela Constituição de usar sua língua em três modalidades, sendo a falada, a escrita e a sinalizada. “Isso para o indígena é natural, ninguém vai fazer propaganda porque no entendimento do povo já é um direito linguístico e os indígenas sempre estiveram abertos a diversidades linguísticas. Para o não-indígena, isso parece coisa de outro mundo, mas não é nada disso”.
A questão é que, na prática, a capacitação de professores não chega ao ideal, de acordo com Shirley. “Um dos pontos é que na hora do professor ensinar a língua indígena, como vamos trabalhar isso? A legislação diz que o indígena surdo tem direito à língua indígena de sinais, língua indígena escrita, Libras, português e inglês. Então, são no mínimo cinco línguas, enquanto o não indígena tem três. Isso faz diferença”, sendo necessário formação específicas.
“Para que uma língua continue existindo, ela precisa ser ensinada e aplicada. Estamos em movimento na Década Internacional das Língua Indígenas 2022–2032, e é uma luta contínua. O que acontece é que as crianças surdas estão saindo das escolas indígenas e indo para as não-indígenas. Na escola não-indígena, não está sendo ensinada a língua materna, mas sim a substituindo. Com isso, essa língua passa a ser apenas a língua de território”, comenta a professora.
Com a falta de investimentos e políticas públicas, toda ação se torna mais complexa. “Quando o Ipedi fala em formação, ele está querendo garantir como é de fato na legislação, o que é realmente necessário. Queremos que as pessoas entendam isso”.
Sabendo que o assunto requer tempo, a professora comenta que um projeto do tipo leva ao menos 50 anos e, claro, ainda mais pesquisas.
Estudos em campo
Professor de Libras no Ensino Superior, efetivo na UFMS, Bruno Roberto Nantes Araújo é um dos pesquisadores da temática de línguas indígenas de sinais em Mato Grosso do Sul. Sobre sua aproximação com a temática, ele explica que também trabalhou no Ceada e, em conjunto à atuação da professora Shirley, foi se interessando ainda mais pelo campo.
Em meados de 2014, já na UFMS, trabalhando no campus de Aquidauana, os depoimentos de próprios estudantes sobre outro indígenas surdos começam a ser notados, uma vez que uma das disciplinas ministradas era de Libras na Licenciatura Cultural Indígena.
A partir de eventos realizados com os alunos e na Aldeia Cachoeirinha, Bruno comenta que indagações começaram a surgir. “Minha tese de doutorado, que está prestes a ser defendida, é sobre a colonização da Libras sobre as línguas de sinais dos indígenas surdos das aldeias Olho d’Água, Barreirinho e Água Azul. Delimitei essas três aldeias, que são parte da Terra Indígena Buriti”.
Sobre a escolha do campo, Bruno detalha que um de seus ex-alunos havia falado que tinha um irmão surdo e contou sobre as dificuldades, “que ele passou muitos anos lutando para uma educação para ele, querendo que tivesse intérprete. Ele sofreu muito porque não teve um acompanhamento, só era inserido na escola. Hoje, o irmão dele terminou o Ensino Médio, sem intérprete, mas o sonho é ainda ter”.
Aos poucos, o professor conseguiu contactar as aldeias citadas e, assim, fez a pesquisa empírica com um levantamento sobre a localização desses indígenas surdos. “Resumindo, encontrei cinco surdos nas estações dessas três aldeias em terra Buriti, com faixas etárias de escolarização, sendo que apenas um idoso não está na faixa, mas tem sua língua de sinais”.
“Todos eles têm suas línguas de sinais, mas no contexto familiar. São línguas de sinais emergentes, criadas nesse contexto familiar. E a partir daquele momento eu também fiz o registro de alguns sinais que eles realizavam durante meu contato com eles na aldeia, fiz também uma análise dentro da gramática de Libras, vendo a diferença desses sinais que são independentes da Libras”, explica.
Sobre seus questionamentos, Bruno comenta que concorda com a importância da Libras para o Brasil e surdos em geral, mas percebeu que apenas “a Libras não dá brecha para as outras comunidades surdas, sobre a questão das outras línguas de sinais”.
Por isso, sua proposta é para que, além da Libras, a educação de indígenas surdos possa ter um atendimento que respeite as especificidades culturais. “Também preservando e valorizando os sinais que eles produzem, sinais indígenas, as línguas indígenas de sinais, que são produzidas ali nas aldeias”.
Educação inclusiva para indígenas surdos
De acordo com o Ipedi (Instituto de Pesquisa da Diversidade Intercultural), Miranda será polo de um projeto piloto na educação inclusiva. “O município sediará iniciativa que vai capacitar professores indígenas da etnia terena na Língua Terena de Sinais (LTS) para que estes educadores possam lidar de forma mais efetiva com indígenas surdos que frequentam as escolas das aldeias locais”, diz a organização.
O Instituto destaca que as escolas nas aldeias não possuem intérpretes para acompanhar os alunos e, de forma paliativa, os estudantes surdos são direcionados para escolas fora das aldeias a serem acompanhados por monitores de Libras.
“Segundo dados da Secretaria de Estado de Educação e da Secretaria Municipal de Educação, em Miranda, hoje, há seis alunos indígenas surdos regularmente matriculados. Para enfrentar o problema, um grupo de entidades, lideradas pelo Ipedi (Instituto de Pesquisa da Diversidade Intercultural) e pela Secretaria de Estado de Educação, está desenvolvendo o projeto 'Línguas indígenas: acessibilidade digital, políticas linguísticas e inclusão' em parceria com outras instituições e pesquisadores do Brasil, como UFPR e UFMS”.
História em quadrinhos
Produzida pelo Ipedi em parceria com a Universidade Federal do Paraná, a história em quadrinhos “Sol: A Pajé Surda”, de Ivan de Souza, nasceu após anos de pesquisa com a orientadora Kelly Priscilla Lóddo Cezar (veja aqui o Trabalho de Conclusão de Curso completo).
Um dos objetivos com a história é possibilitar a acessibilidade de indígenas surdos e também mostrar para a comunidade brasileira que existem outras línguas sinalizadas no País.
No livro, o enredo trata sobre uma mulher indígena surda anciã chamada Kaxe, que exerce a função religiosa de pajé, Koixomuneti, na língua terena. Chamada para auxiliar em um parto, que é um ritual típico, pede a benção dos ancestrais para o recém-nascido e o futuro do povo terena é revelado e transmitido de forma visual.
Na HQ, são utilizados predominantemente elementos visuais para compor a estrutura da linguagem dos quadrinhos, indo ao encontro da estrutura linguística das línguas de sinais, que é visual-espacial.
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