Diário de 1959 revela juras de amor que um escrevia escondido do outro
![Caderno de recordações foi testemunha do amor de Mariana e Antanas de 1959 até 1974. (Fotos: Alcides Neto)](https://cdn6.campograndenews.com.br/uploads/noticias/2020/03/10/3i1glyurp6w40.jpg)
De 1959 a 1974, Otto escrevia para Nenza juras de amor que tinham de sinceridade o mesmo que de perfeição na caligrafia. Ela retribuía, assinando com o apelido que trazia da infância. Ele terminava com o nome mesmo, como fora registrado.
Nas primeiras páginas, o caderno traz a escrita das amigas de Mariana Saltão na década de 1940 e eram guardados como recordação da época de escola. Oito anos depois de se casar com Antanas Maciulevicius, em 1959, é que as folhas se tornaram dos dois, testemunhas de um amor que buscava na poesia e na meninice, palavras para descrever tamanho sentimento de um encontro de almas.
Na semana que passou é que, durante uma arrumação de armários, fui apresentada aos meus avós que se foram antes que eu pudesse conhece-los. Nenhuma história contada anteriormente traduzia tão bem o que fora – para ambos – um amor arrebatador e eterno quanto a própria escrita deles.
"... Hoje ... Fevereiro de 1959..." Era assim que meu avô começava cada carta que deixava. Ali, no primeiro registro, Otto voltou aos anos da meninice, quando à sombra das palmeiras sonhava com ela, quem viria a ser a rainha da sua vida?
"Onde haveria de encontrá-la? Ficava a sonhar que castelos de ilusão que eu, igual a um gigante, haveria de atravessar muros cercando-a de carinhos e de felicidades para que nada faltasse à minha deusa. E hoje, completando 40 anos percorridos ao despertar dos primeiros sinais de outono, o que eu fiz na vida, o que ofereci à minha deusa encantada, o que estou oferecendo e o que poderei oferecer ainda quando faltam tão poucos anos nesta passagem da terra. Seria eu o culpado, ou o destino assim quis que fosse quase nada, a não ser este amor egoísta que te dei meu amor e que tanto preciso de você para terminar esta jornada. Antanas, 7 de fevereiro de 1959."
A assinatura sempre vinha no final, junto do dia em que o sentimento encontrou o papel.
Foram 20 dias até vir a resposta. Ele escrevera sem ela ver e de surpresa, quando encontrou, Mariana retribuiu à altura, da mesma forma que o amado. Começando com "Hoje" e terminando com sua assinatura de menina - Nenza - e a data.
"Hoje
Não posso descrever com palavras a emoção que senti ao ler o que escreveste. Estás muito enganado querido, deste-me o maior presente que existe na terra, pois dando-me amor, carinho e os nosso filhos. Esqueceste-se amor? Deu-me a felicidade. Que mais posso desejar nessa vida? A não ser pedir a Deus para que possamos seguir sempre unidos por este amor e assim terminaremos a jornada que tão felizes empreendemos juntos.
Nenza, 26 de fevereiro de 1959."
Mariana era campo-grandense, morena de olhos verdes e dona de uma generosidade proporcional à pressa que tinha para viver tudo ao mesmo tempo e agora. Antanas era estrangeiro, nascido na Lituânia, veio para o Brasil ainda criança. Loiro, alto e que carregava uma timidez indescritível por trás dos olhos azuis. Chegou a Campo Grande em 1950, como funcionário da Camargo Corrêa para a construção do aeroporto na cidade.
Morava num hotel na Rua Cândido Mariano, de frente para a casa do padrinho de Mariana, onde os olhos dos dois se encontraram primeiro para repetidas vezes pelo resto de suas vidas por aqui.
![Casamento aconteceu sete meses depois do início do namoro e é descrito abaixo, por ela, quando eles comemoravam oito anos juntos.](https://cdn6.campograndenews.com.br/uploads/noticias/2020/03/10/1er8qcli15p6d.jpg)
Admiradora declarada de quem decide dizer “sim” no altar, se tivesse o presente da convivência com a vó Mariana, eu obviamente a teria feito contar esta cena um milhão de vezes. Para minha sorte, ela escreveu como foi sua entrada na igreja, desde a decoração ao amor que a envolvia até a chegada diante do noivo. Parece que sabia que isso mataria a curiosidade da neta pelo seu grande dia. Reli repetidas vezes as palavras dela e imaginei como num filme como fora a troca de alianças dos dois.
"Hoje 7-4-59
Oito anos
Parece-me que foi ontem que entrei naquela igreja toda enfeitada de lírios brancos, caminhava tão devagar e olhando sempre um alguém que estava ao pé do altar, este alguém era o meu amor, aquele que escolhi para o meu companheiro de toda a vida. Sou muito feliz, muito feliz porque depois de oito anos ainda o amo, ou talvez mais ainda do que naquele dia tão lindo em que nós nos casamos, e, agradeço a Deus, de todo coração tamanha felicidade.
Com carinho, Nenza."
Os dois começaram a namorar num piquenique que aconteceu na Base Aérea, em comemoração ao 7 de Setembro e se casaram sete meses depois. Na penúltima carta é que se consegue saber quando é que as declarações eram feitas. Nas viagens que Mariana fazia, a saudade foi o que levou Antanas ao encontro com a caneta e o papel. De 1959, a folha pula para o ano de 1964 e mostram que eles já caminhavam para a velhice. Como estrangeiro, meu avô trazia na memória o branco da neve e recorreu ao passado para pontuar o que esperava o futuro tão próximo e ao mesmo tempo já curto a eles.
"Hoje
Janeiro 1964
Quando a neve aos primeiros passos do inverno começa a colorir teus cabelos, recordo com saudade os anos percorridos de felicidade e amor junto a teu lado minha querida. E cada vez que ficas ausente, aumenta minha saudade num delírio ou receio de perder-te e nesta saudade egoísta, quero-te cada vez mais só para mim e nesta solidão, onde se perderm as ilusões no horizonte da vida, é que sinto o quanto necesside de ti, meu amor.
Antanas, 27 de janeiro de 1964."
Assim como as palavras se encontravam no diário, Mariana e Antanas tiveram olhos um para o outro a vida inteira. A última carta, não chegou a ser terminada. Se imagina que a amada deve ter chegado no exato instante em que ele, inspirado, começava a escrever.
"Hoje, outubro de 1974".
No caderno de pensamentos de Mariana, Otto não escreveu mais. Ele morreu em 1985, ela, cinco anos depois. No intervalo da despedida, era frequente vê-la de olhos marejados e o caderno à vista. Quando a saudade apertava, Mariana recorria às juras feitas nas últimas cartas de amor.