Doença leva memória e deixa só música do Grupo Acaba para Chico
Diagnosticado com Alzheimer, o famoso Chico não esquece as canções e a pintura que hoje colore os dias da família
O senhor de 75 anos surge impecável na varanda da casa em frente ao Parque das Nações Indígenas. Desabrocha um sorriso doce ao saber que mais uma vez vai contar sua história, ou parte dela. Publicitário, empresário e artista famoso como músico do Grupo Acaba, Francisco Saturnino Lacerda Filho, o Chico para a maioria, hoje enfrenta o Alzheimer, doença que tem levado consigo algumas lembranças, mas não a mistura de sons e poesia do grupo que para ele é também o cheiro e a cor do Pantanal.
Chico não trabalha, não vai mais à agência, não faz mais shows... só pinta, canta, faz poesia, colore seus dias mesmo quando a mente se vai e ele não compreenda bem o que significam todos esses esquecimentos. Hoje, os principais movimentos são com as artes plásticas, quase todos os dias da semana ao lado do grande amigo Carlos Vera. “Olhe nossas obras, estamos vendendo”, avisa.
As obras de arte que ele exibe são vasos comprados pela filha no início da pandemia para que ele pudesse pintar, ideia do artista plástico e publicitário Carlos Vera, que diariamente passava na casa para bater papo com Chico e se dispôs a pintar junto com o amigo.
As horas de pintura resultaram em obras de beleza visual forte, com traços kadiwéu e um colorido que faz nascer uma estética subjetiva. Pelo sorriso de Chico, também são cores que fazem qualquer isolamento passar despercebido. A equipe do Lado B achou tudo lindo, mas, mesmo que pudesse comprar ao fim da entrevista, ficaria na vontade. “Já está tudo vendido”, diz orgulhoso.
De volta à cadeira, pede à filha Carina Cury de Lacerda, o seu “cordão de ouro”, uma corda cheia de penduricalhos para os leigos, e um verdadeiro arsenal musical para Chico, que faz nascer dos pequenos instrumentos de madeira amarrados na corda branca percussões que traduzem o som dos pássaros, o barulho das árvores que balançam com o vento, o som das águas barrentas, até da madeira que assentavam as casas de palafita na região pantaneira onde nasceu.
É pai de um “dicionário do Pantanal”, classifica orgulhoso ao falar dos instrumentos. “O Pantanal é música, se alguém quiser conhecer, ele está nas músicas do Grupo Acaba”, indica tocando o instrumento feito de bambu. Ainda debocha de quem um dia tirou sarro dizendo que ele só segurava um pedaço de pau na mão. “Esses não sabiam absolutamente de nada. O som está aqui ó... escuta o Pantanal”. E lamenta só quando faz no instrumento o barulho do trem que passava.
“Hoje os trens viraram uma espécie de desconforto que as pessoas deixaram escapar das nossas mãos”, diz.
Diz ser tão apaixonado pelo Pantanal, que viu música nele da hora que saiu da barriga da mãe até os dias de hoje. Também atribui o talento em fazer poesia ao pai. “Meu pai era músico”, resume. Lembra dos vizinhos, do senhorzinho em uma das casas, da igreja na região de Albuquerque, e cita que conseguiu fazer tudo na área da comunicação, se orgulhando do reconhecimento a nível nacional.
Mesmo que a doença deixe de lado uma ordem cronológica de lembranças e, por vezes, isso pareça confuso, a gente dispensa. Da vida como hippie ao menino pantaneiro, do sucesso como publicitário às histórias em São Paulo ou Minas Gerais, os detalhes lembrados por Chico são pautados pela mesma paixão: a música.
“Diz que a música é uma das últimas coisas a serem esquecidas”, se apega a filha. Ainda que as frases não saiam completas, ele se recorda de boa parte das letras, às vezes, pede ajuda de Carina, que atende aos pedidos, quantas vezes for necessário, junto do irmão Daniel, outro orgulhoso pela história do pai.
Quem também se orgulha e faz o possível para ajudar, não por obrigação, mas pelos anos de amizade é Carlos, que é mais do que um professor de pintura. Se não soubéssemos a história deles diríamos que são irmãos. “O Chico é uma pessoa especial pra mim. Estamos juntos nessa caminhada há mais de 30 anos, trabalhamos juntos, somos amigos, e não importa o que aconteça estarei aqui”, descreve o artista plástico.
Diagnóstico - Há 9 anos a vida da família começou a mudar, lembra Carina. A mãe, dona Sônia Maria Cury de Lacerda, teve um diagnóstico de um câncer que a levou em três anos. “Esse fato mexeu com a vida de todos nós, em especial a do meu pai”.
Chico tinha um casamento de 43 anos, era um eterno apaixonado pela dona Sônia, mas a perda do grande amor não o deixou seguir em frente, “nunca mais foi o mesmo”, descreve.
O primeiro diagnóstico foi de demência e há três anos a família convive com o Alzheimer. Como filhos, Carina e Daniel tentam fazer de tudo para que ele não se sinta doente. E isso nada tem a ver com a condição financeira. Juntos exploram o afeto, o olhar, a simplicidade nas respostas, a paciência em repetir a mesma informação, o elogio às obras que ficaram pela sala que ele mesmo fez questão de decorar.
“Seguimos nossa intuição e coração. Ele tem uma rotina agitada, recebe amigos, vai até eles quando sente vontade, tem muitos projetos editoriais que ainda quer realizar, voltou a pintar, graças ao estímulo do Carlos Vera, parceiro dele há muitos anos, e tem a música, que hora ou outra está com seus apitos fazendo um som”.
A casa de Chico é uma mistura de escritório, agência, ateliê... e assim a família faz questão de deixar.
“Acho que estamos no caminho certo, se é que existe caminho certo. Nosso maior interesse é que ele tenha alegria e paz. Mesmo sabendo que o Alzheimer leva um pouco dele a cada dia, vivemos um passo de cada vez”, finaliza.
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