Há 26 dias, acervo musical com 50 mil CDs ‘vive’ sem Ciro de Oliveira
Filha do jornalista fala sobre o homem que amava música, o trabalho e a coleção que não tem destino definido
“Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar, com o brilho dos seus olhos, só pro meu amor passar”. A música ‘Coração de Papelão’ é a primeira que vem à cabeça de Andressa Calepes de Oliveira, de 40 anos, quando ela pensa no pai, Orsirio de Oliveira. Mais conhecido como Ciro, o jornalista faleceu em 12 de outubro deste ano, aos 74 anos, após sofrer parada cardíaca em casa, no Bairro Coophasul.
É na sala rodeada pelo acervo musical dele composto por discos de vinil, fitas K7 e 50 mil CDs que Andressa fala sobre o homem reservado, carinhoso, que estava sempre bem vestido e era um grande apaixonado pela música.
Falar do repórter sem mencionar a rica coleção musical seria impossível. É como se Ciro e a música fossem sinônimos, partes indivisíveis, notas musicais que compõem melodia única. Ciro de fato foi único, teve várias facetas e não apenas a de jornalista e radialista que todos conheciam. Ciro também foi o pai de coração da fisioterapeuta e o ‘vovô véinho’ da Heloísa, de 5 anos.
Em uma conversa de rotina dias antes do 12 de outubro, Andressa falou para o pai sobre os planos de viajar e ficar fora de Campo Grande. Pensando naquela conversa, hoje, ela acredita que o jornalista pressentia que algo poderia ocorrer.
“Acho que no fundo ele já sabia que algo ia acontecer. Pra ele, eu e minha mãe éramos tudo. Ele não estava muito bem de saúde e um dia falamos que queríamos viajar e ele disse: ‘Vão, eu vou ficar bem’. Acredito que ele não queria que a gente presenciasse toda a situação”, diz.
A ligação a qual informava que não estava bem foi a última que recebeu dele antes de voltar à Capital. Ciro recebeu ainda em casa os primeiros socorros, não resistiu e às 4h30 se despediu da vida. Quando Andressa e a mãe chegaram na residência, o corpo já tinha sido retirado.
A morte do veterano da comunicação em Mato Grosso do Sul repercutiu em diversos veículos de Campo Grande e do Estado. As diversas matérias, mensagens de colegas de profissão, homenagens e outras demonstrações de pesar pegaram a família de surpresa.
Desde que Andressa nasceu, conhecia e mantinha contato próximo com o homem que a criou, a chamava e a apresentava como filha. Mesmo assim, ela não fazia ideia do quanto ele era querido e amado para além do círculo familiar.
“Ele era muito reservado, tanto que a gente da família ficou espantado com o tanto de gente que gostava dele, ouvintes que tinha, da repercussão e do legado. Com a gente ele era demais de reservado, como ele era muito humilde com esse jeito dele, quando aconteceu a gente nem imaginava. Ficamos bem emocionados”, comenta.
Coração de papelão - Após mencionar a repercussão que a notícia do falecimento teve, pergunto se a fisioterapeuta é filha única. Ela realmente é, porém não da forma como imaginava. “Na verdade, ele é irmão da minha mãe, meu pai não me quis, eu não o conheci e aí o meu tio entrou na jogada. Ele bateu de frente com todo mundo e disse que iria assumir. Desde pequena me chamava de filha, falava pra todo mundo e eu o considerava como pai. Pra mim, perdi um pai e não um tio”, afirma.
Como pai, Ciro esteve presente em todas as fases de vida de Andressa. O jornalista era quem a levava para escola, apoiava, dava suporte, se estressava pouco, mas sempre chamava a atenção dela quando necessário. Entre as principais lembranças que tem ao falar sobre a figura paterna, ela compartilha uma.
“Ele fazia todo o papel de pai mesmo, lembro quando era criança e nunca gostei de português. Tinha preguiça de ler e admirava porque ele lia demais. Às vezes chegava da escola, tinha que fazer redação e falava: ‘Você que é editor, você que vai me ajudar’. Aí ele escrevia uma parte e me ajudava em todas as redações”, recorda.
Voltando um pouco mais no passado, uma memória vem à tona. A recordação é o ritual que Ciro e ela faziam ano após ano em cada aniversário. Cada ano que Andressa completou foi marcado pela valsa dançada ao som de ‘Coração de Papelão’.
“A gente teve um ritual desde os meus sete anos de idade. Nos meus aniversários, ele dançava a valsa comigo e na hora que dançava me pegava no colo e colocava nos braços da minha mãe. Todos os aniversários era feito esse ritual e ele escolheu uma música da Simony que tocava toda vez pra mim”, conta.
A música interpretada pela voz infantil de Simony esteve presente não só nos aniversários, mas também na formatura e no casamento da fisioterapeuta. Há nove anos, o casamento pôs fim ao ritual entre pai e filha. Na época, durante a festa, Ciro pegou Andressa no colo e dançou a valsa pela última vez. “Aí ele me entregou nos braços do meu marido”, completa.
Embora o ritual não fizesse mais parte dos aniversários há um bom tempo, foi inevitável não lembrar da valsa quando soube que o pai morreu. “Quando falaram que ele tinha falecido, a primeira lembrança que me veio foi isso. Agora não vai ter mais”, desabafa.
A conversa muda de rumo, segue para a música e como Ciro conseguiu ‘educar os ouvidos’ de Andressa. Antes mesmo de compreender a importância que a música tinha na vida do pai, eram justamente as melodias tocadas por ele que a acalmavam.
“Quando era criança, tive problema de adenoide, chorava demais e demoramos para descobrir. Minha mãe conta que quando ele chegava da rádio, ele escutava toda a programação para saber se estava tudo ok. Aí eu me acalmava quando ele chegava com as músicas que ele tava tocando. Fui crescendo, acabou que meu gosto foi mudando, mas gostava muito dos estilos musicais que ele tinha”, relata.
Acervo musical - A sala dividida em dois ambientes ocupados por prateleiras do teto ao chão é onde estão os discos de vinil, as fitas K7 e os CDs do radialista. Andressa não sabe dizer a quantidade de discos e fitas, mas garante que ali estão guardados 50 mil CDs.
Ciro conhecia o acervo não só através dos ouvidos. Só de olhar, o jornalista sabia se algum CD estava faltando. O zelo que ele mantinha com o acervo fica evidente por meio de mais uma história revivida por Andressa. “Às vezes eu pegava para ouvir e quando ele chegava da rádio, falava: ‘Você já foi lá pegar um CD, né?’ Aí eu falava: ‘Como você sabe? Eu deixei tão arrumadinho’. Ele respondia: Eu sei tudo, cada detalhe eu sei”, conta.
A coleção musical do comunicador impressiona, surpreende e provoca ao ponto de ser difícil ficar sem olhar para os lados e ver o mar de produções musicais intactas e bem preservadas. Djavan, Maysa, Elis Regina, Délio e Delinha, Julio Iglesias, Wando, Gal Costa, Fábio Jr, Amado Batista, Latino, Chico Buarque, Dominguinhos, The Police, João Bosco, Luiz Gonzaga, É o Tchan são alguns dos artistas que se misturam nas prateleiras junto com as das coleções de clássicos da bossa nova e MPB. Esses nomes são apenas a pontinha do iceberg que representa o rico acervo.
Ouvir música era a brincadeira favorita do jornalista que conseguiu aliar a paixão ao trabalho. O profissional começou a carreira aos 13 anos como ‘garoto de recados’ na Rádio Educação Rural, onde posteriormente foi promovido a sonoplasta.
Ciro passou por várias outras rádios e também em diferentes emissoras de televisão. Parte da trajetória dele foi contada em 2014 no Campo Grande News. “Muito antes das FM, ele produzia o “Difusora Faixa Musical”, tocando Milton Nascimento, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Elis Regina. Envolveu-se com o jornalismo do rádio, colhendo preciosas notícias do interior, numa época em que era verdadeira batalha fazer interurbano. Assim chegou à TV Morena, onde cumpriu com maestria 25 anos de trabalho”, escreveu na época a jornalista Lenilde Ramos.
Nem na pandemia o jornalista ficou afastado do trabalho na rádio. Segundo Andressa, ele se ajustou à tecnologia e a distância conseguiu tocar o programa na FM 104. “Ele escutava os CDs dele do mesmo jeito e só mandava a programação pelo e-mail e a rádio baixava pelo Spotify”, explica a filha.
Nos últimos anos antes de a pandemia chegar, o radialista vinha numa crescente de mudanças. A chegada da neta Heloísa, segundo Andressa, o deixou diferente. “Ele era muito sistemático em vários quesitos e depois que ela nasceu ele mudou tudo”, ressalta.
Viva Ciro! - O acervo de Ciro ainda não tem destino definido. A vontade de Andressa é que os discos voltem a ganhar os ouvidos das pessoas, de que a paixão dele continue repercutindo através das ondas da rádio, da internet, como tiver que ser. “Minha ideia é que ele continue vivo na presença das pessoas”, destaca.
Ciro ainda vive no coração de Andressa, Heloísa, Lina Maria e Lenine de Oliveira. Ele deixa a família, colegas de profissão, amigos e o acervo musical que adorava.
Acompanhe o Lado B no Instagram @ladobcgoficial, Facebook e Twitter. Tem pauta para sugerir? Mande nas redes sociais ou no Direto das Ruas através do WhatsApp (67) 99669-9563 (chame aqui).
Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para acessar o canal do Campo Grande News.
Confira a galeria de imagens: