Injúria racial não é coisa só de clube europeu, aqui jogador sofre calado
É preciso ter "equilíbrio" para aguentar o racismo nos campeonatos pequenos
Estava eu assistindo ao jogo entre Porto e Vitória de Guimarães, no dia de 16 de fevereiro desse ano, válido pelo Campeonato Português, quando de repente, aos 25 minutos do segundo tempo, sem nenhum indicativo de confusão ou expulsão, o atacante francês Moussa Marega, revoltado, começa a sair do campo.
Assim como eu, o narrador ficou um pouco confuso com aquela cena, do atleta sendo contido pelos companheiros enquanto caminhava fazendo sinal de negativo em direção ao vestiário. Ele estava furioso e ninguém foi capaz de dissuadi-lo. Marega foi embora.
Alguns minutos depois veio a razão daquela atitude. Marega, negro, resolveu sair de campo por conta dos insultos racistas que recebia desde o início do jogo por parte da torcida adversária.
“Gostaria apenas de dizer a esses idiotas que vêm ao estádio fazer gritos racistas: vá se f.. E também agradeço aos árbitros por não me defenderem e por terem me dado um cartão amarelo porque defendo minha cor da pele. Espero nunca mais encontrá-lo em um campo de futebol”, desabafou o jogador em sua conta no Instagram.
O caso ganhou repercussão mundial. Muitos jogadores, ex-jogadores, comentaristas e instituições apoiaram a atitude de Marega e condenaram os ataques da torcida do Vitória.
Infelizmente, essa mesma rede de proteção não existe para atletas de clubes pequenos em ligas menores, como é o caso dos atletas dos clubes de futebol sul-mato-grossense.
Chegamos no meio do treino do Operário Futebol Clube, um dos clubes mais tradicionais do Estado. O clube conta com plantel de 22 jogadores, sendo nove brancos, um indígena e 12 jogadores negros, segundo o próprio clube.
Quando levamos em conta apenas o time titular que jogou a última partida antes da publicação dessa matéria, no sábado, dia 14, a proporção de atletas negros é ainda maior, 8 dos 11 que iniciaram a partida.
Vindo de lesão, Jônatas Obina, um dos jogadores mais experientes do Operário, trabalha separado do restante dos atletas. Negro, já com 34 anos e 14 de carreira, Obina, que é mineiro, sintetiza a realidade da maioria dos jogares de futebol no Brasil.
Ele passou por dezenas de clubespequenos nacionais e internacionais, inclusive pela seleção de Guiné Equatorial, mas também conhece a realidade de grandes clubes, como é o caso do Atlético Mineiro, onde jugou em 2011.
Depois do trabalho de recuperação, o atacante nos dá alguns minutos para conversar. Jônatas Obina é o apelido de Jônatas Paulino da Silva Inácio e uma referência ao icônico atacante Obina do Flamengo, Palmeiras, que também passou pelo Atlético Mineiro, inclusive um pouco antes de Jônatas.
“Me acho parecido com ele no jeito de jogar, na garra e intensidade apenas, fisicamente não”, compara o atleta, que tem como única característica física semelhante a cor; os dois são negros.
Em Mato Grosso do Sul há pouco tempo, Obina não teve a infelicidade de ter sofrido ataques racistas durante os jogos, mas em sua carreira é diferente. “Eu não consigo lembrar o jogo ou os jogos, mas já passei por isso sim, de ser xingado de ‘macaco’, ‘preto’, essas coisas, mas dentro de campo a gente procura focar no jogo e ignorar o que acontece lá fora, é preciso ter equilíbrio”.
Nesse ponto Jônatas abre uma segunda discussão, que talvez explique a falta de consequências em atitudes racistas nos campeonatos menores, que é fragilidade dos laços contratuais entre jogador e clube.
“Tem muitos atletas com contrato de três, quatro meses, e eles ficam receosos de atrapalhar a vida no clube ou até mesmo em contratos futuros, diferente de quem tem contratos estendidos, que se sente mais seguro”.
Com consciência de sua posição em uma sociedade tão marcada pela desigualdade racial, Obina também reclama da falta de assessoria dos próprios clubes. “Nos clubes grandes é o contrário, o próprio clube tem um jurídico que ajuda o atleta”.
Depois que fizemos as fotos com Jônatas, ele nos orientou que conversássemos com outro colega de clube, gritou então para o atleta que estava do outro lado do campo: “César, fala com os caras aqui”.
Obina falava com Mario Rafael Ferreira dos Santos, o Makeka. Baiano, o lateral esquerdo de 30 anos, também passou por vários clubes pequenos no Brasil, mas nunca sofreu ataques racistas em sua carreira. “Isso vem de muitos anos, o racismo, acho que é difícil acabar, o negócio é seguir em frente”.
Apesar da aparente resignação, Makeka sempre reagiu ao racismo em sua vida, seja dentro ou fora dos gramados. “Uma vez, em Brasília, fui a uma joalheria ver um anel para minha esposa. Olhei alguns modelos, mas não levei nenhum. Para minha surpresa, ao sair da loja, fui abordado por policiais dizendo que haviam recebido uma denúncia de que eu poderia estar com algum anel furtado. Voltei na loja revoltado e reclamei para o gerente que me pediu desculpas imediatamente”.
Regendo a equipe do Operário está o jovem técnico Glauber Caldas, de 33 anos. Apesar da pouca idade para o cargo de técnico, Glauber já passou por alguns clubes pequenos nacionais e teve a oportunidade de estagiar em grandes clubes da Europa como Atlético de Madrid, Roma e Tottenham.
As experiências do “professor Glauber” fizeram com que ele tenha um olhar diferente, mais amplo, da questão racial no futebol. Pra ele, existe uma espécie de racismo estrutural dentro do mundo futebolístico, o que, de certa forma, naturaliza brincadeiras de cunho racistas entre os atletas, inclusive.
“Eu acredito que exista uma cultura dentro do futebol de brincadeiras que não deveriam ser brincadeiras, que acontecem no dia a dia e, apesar de eu achar que não deveria, acaba que o negro também aceita”.
É uma boa hora para explicar a razão de Jônatas Obina ter chamado Makeka de “César”. Quando nos encaminhávamos para entrevista com Makeko, alguém pergunta: “Sabe porque César, já assistiu Planeta dos Macacos? Em seguida, todos riem. César é o personagem principal da nova trilogia do clássico, e é um macaco.
Quando trabalhou no Novorizontino, Glauber foi técnico do atacante João Paulo, agora no Caxias-RS. João Paulo foi um dos protagonistas de um dos mais recentes casos de injúria racial no país, no jogo entre Caxias e São Luiz, pelo Gauchão, no último dia 9, quando outro atacante do Caxias, Leo Tijica, ouviu xingamentos racistas da torcida adversária.
“Pelo fato de ser companheiro de clube dele, e por ser negro, revolta bastante. Faltar com respeito no nosso de trabalho, em um local onde envolve famílias, é muito feio. É revoltante. Não só para quem estava ali e não agiu corretamente. O correto era identificar. Infelizmente, o mundo está cheio dessas pessoas bossais, que têm falta de inteligência”, declarou João Paulo ao jornal Zero Hora.
Técnico no Operário desde 2018, Glauber cresceu no mundo do futebol. Outra constatação oriunda de uma vida dedicada ao esporte é a de como a arquibancada vira um momento de escapismo do torcedor, onde ele teoricamente pode, dentre outras coisas, atacar quem está dentro de campo.
“O campo de futebol é tradicionalmente um lugar em que o torcedor vai para fugir um pouco da realidade, onde acaba colando todas as frustrações de casa”, analisa Glauber.
A presidente da recém-criada Comissão da Igualdade Racial (COMIR) da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso do Sul (OAB/MS), Silvia Constantino, explica que em muitas decisões da justiça comum, atos de injúria racial praticados eventos esportivos por parte dos expectadores, são relevados pelos juízes justamente por que as pessoas estariam agindo no “calor da emoção”.
“Pra você ver como, às vezes, o próprio judiciário não está preparado para lidar com essas questões raciais, tanto que não há dispositivo específico na justiça comum abrangendo o esporte”.
Dia de jogo
Fomos então ao último jogo do Operário, realizado no Estádio Morenão, em Campo Grande, contra a equipe do Costa Rica-FC, válido pela 10ª rodada do Campeonato Estadual.
Com 378 pessoas presentes, e maioria esmagadora dos torcedores sendo operarianos, o Operário venceu o clube do interior por 2 a 1, engatando sua terceira vitória seguida e chegando a 3ª posição no campeonato estadual.
Jônatas Obina, que no treino visitado por nós não sabia se estaria liberado pra jogar, começou no banco e só entrou na metade inicial do segundo tempo, quando a partida ainda estava empatada.
Vendo que Obina entraria a torcida ficou animada e começou a gritar o nome dele. Um senhor ao meu lado entusiasmado comentou: “Esse negão é fazedor de gol”.
Alguns minutos depois, ainda durante o empate, Glauber chama outro destaque do time que também saia de lesão, o camisa 10, Igor Vilela. Em meio a comemoração de novo, o mesmo senhor diz: “Esse baixinho é habilidoso pra ca....”. Igor, realmente muito habilidoso, é branco.
Não obstante gritos e xingamentos comuns em estádios, a torcida do Operário fez bonito no jogo contra o Costa Rica, sem parar de apoiar um só segundo seu time sequer, mesmo por ocasião do empate, já que o time da Capital tinha saído na frente.
O que diz a lei
O Código Penal, em seu artigo 140, descreve o delito de injúria como conduta de ofender a dignidade de alguém, e prevê como pena, a reclusão de 1 a 6 meses ou multa. Já crime específico de injúria racial está previsto no parágrafo 3º do mesmo artigo e trata-se de uma forma de injúria qualificada, na qual a pena é maior. Para sua caracterização é necessário que haja ofensa à dignidade de alguém, com base em elementos referentes à sua raça, cor, etnia, religião, idade ou deficiência. Nesta hipótese, a pena aumenta para 1 a 3 anos de reclusão.
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva é bem mais detalhado no caso de atos discriminatórios. O artigo 243 aponta que praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência pode causar pena de multas que variam de R$100 à R$100.000 até a exclusão do campeonato ou torneio dependendo da dimensão do ato discriminatório.
Segundo o presidente do Tribunal de Justiça Desportiva de Mato Grosso do Sul, Patrick Hernandes, não chega muitos registros de injúria racial no tribunal daqui, mas não porque o ato racista não aconteça. “Tenho certeza que acontecem muitos mais casos de racismo do que chega pra nós no Tribunal, mas isso é reflexo de que muitos atletas, por vários motivos, não levarem isso pra frente”.
Ainda conforme Patrick, o último caso julgado de injúria racial atendido pelo tribunal foi em 2018.
Já Silvia dá uma última orientação: “Não podemos nos calar diante de um ato cruel como esse. Tem que ir à delegacia e fazer um boletim de ocorrência. E o mais importante coletar provas: gravar áudio, vídeo para embasar o processo”.
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